Os trabalhos de Wallison Gontijo e Sanzio Marden se aproximam por alguns aspectos: o uso da aquarela, a busca da figuração e a opção por suportes de pequenas dimensões. Para além desses aspectos formais, eles constituem conjuntos bem diferentes ou mesmo opostos se vistos de certa perspectiva. Para indicar apenas algumas diferenças, Wallison trabalha com uma ou algumas figurações, Sanzio opta por construir seus trabalhos com figurações diversas e geralmente perspectivadas; a paleta de Wallison é ampla para dar conta, naturalmente, da variedade de cores dos pássaros, a paleta de Sanzio reduz-se, grosso modo, às cores terrosas, ocres e vermelhos.
O reino de Wallison Gontijo é o céu. O lirismo dá a tônica às suas apresentações. Por um lado, ele retoma a tópica, explorada desde os tempos coloniais, de registrar a flora e a fauna da terra, aqui particularizada em seus pássaros. Por outro, o “realismo” não é mais o mesmo. Longe da tentativa de exatidão na representação dos pássaros pintados por tantos viajantes, em Wallison o que se busca é, com poucos traços e alguns campos de cor, capturar o âmago, a “alma” do pássaro representado, sua particularidade, enfim. E há outras estratégias em jogo, como a de deixar apenas a silhueta de um pássaro, seu esboço, notável em “conversa” e “sem título”, como que a criar um jogo entre essência e aparência. Por vezes, o fundo funciona perfeitamente para captar o típico movimento sincopado, quase robótico, dos pássaros. É o que se vê em “inhambu chororó”: como resposta precisa ao movimento de seu andar, os traços vegetais mimetizam o passo que está sendo dado. O mundo de Wallison é o da poesia.
O reino de Sanzio Marden é a terra. Seus tons terrosos, o vermelho, o sépia registram isso. E as representações aludem a diversas vertentes: às histórias em quadrinhos, campo que frequenta há anos, à literatura de cordel, à cultura popular e seus signos, como o circo presente em diversos trabalhos. Há algo de trágico e violento em toda parte: nas árvores e arbustos secos e retorcidos, nos pássaros agressivos que gritam, nos bois aos berros, nos tridentes demoníacos, nos jagunços armados, por vezes com chapéus de palhaço ou de festas infantis, nas fisionomias duras, sérias ou desoladoras de seus personagens, como no cavaleiro abraçado ao pescoço de seu cavalo, no sertão que se deixa entrever. Se o circo funciona como contraponto a tanta agressão, talvez seja só para reafirmar “o mundo como teatro”, a ambiguidade entre realidade e festa. Ver esses trabalhos é elaborar narrativas sobre o que estaria ocorrendo, é tentar inventar histórias que os esclareçam. O mundo de Sanzio é o da prosa.
Uma possível unidade fugidia para os dois artistas talvez seja a memória de João Guimarães Rosa, a ponte a ser percorrida entre o “manuelzinho da croa” de Wallison e o diabo aqui e ali entrevisto nas imagens de Sanzio. Duas visões, por vezes opostas em seus alvos, mas que podem ser complementares na tentativa de esboçar algumas particularidades de nossa condição histórica.
Ronald Polito
Exposição do voo ao chão
Artistas: Sanzio Marden e Wallison Gontijo
Curadoria: Ronald Polito
Produção: Ana Paula Dacota
Período: 30/03 a 20/04
Local: Asa de Papel Café & Arte – Rua Piauí, 631 – Santa Efigênia, Belo Horizonte – MG
Minibios
Sanzio Marden: Artista pástico formado pela Escola de Artes Visuais Guignard – Belo Horizonte (MG). Pós-graduado em Arte Educação pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (CE). Trabalhou como artista plástico e arte educador em projetos voltados à Conservação e Preservação do Patrimônio Histórico em parceria com a FIEMG e FIESP nos estados do Ceará, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo nos anos de 2002 a 2015. Participa de exposições coletivas e individuais no Brasil e exterior. Ilustra livros infantis, infanto-juvenil, quadrinhos e técnicos para diversas editoras e empresas. Atualmente desenvolve trabalhos de UX, UI e digitais para empresas.
Wallison Gontijo é formado em Artes Visuais e Educação Artística pela Escola Guignard e em Geografia. Artista, editor de livros, é também ilustrador de vários livros, zines, cadernos e outros materiais editoriais. Sócio na Impressões de Minas Editora, é idealizador da feiras Textura, pequena feira de literatura e da feira URUCUM: feira de livros, design e artes gráficas. Idealiza e contribui em vários projetos em Minas Gerais e no Brasil de fomento à literatura e artes gráficas e à formação de leitores.
Ronald Polito nasceu em Juiz de Fora, em 5 de abril de 1961. É poeta e tradutor. Seu último livro de poemas intitula-se Rinoceronte (São Paulo: Quelônio, 2019). Traduziu diversos autores de língua catalã e castelhana, como Joan Brossa, Maria-Mercè Marçal, José Juan Tablada e José Koser.
Feras, ainda que com a serenidade de mineiros!! Recomendo Dilmais.
Outro ponto que aproximam os dois artistas Wallison Gontijo e Sanzio Marden, é que ambos foram forjados nas fronteiras áridas do Boa Vista e Nova Vista, bairros Estado-Nação da periferia de Belo Horizonte.
Que bela apresentação! E belas pinturas!
Fiquei com muita vontade de conhecer esses dois trabalhos. Parabéns!