A Poética Apocalíptica de Djami Sezostre: Um Voo Performático d`O Pássaro Zero

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Por Mírian Freitas
Crédito da foto: João Debs

Nem toda poesia é uma performance revolucionária ou um exercício experimental como a do poeta mineiro Djami Sezostre, de Rio Paranaíba. Hoje não se pode pensar a Modernidade sem recorrer ao nome deste autor. Sua escrita é uma indefinição, porém, não no sentido daqueles versos que adoecem no limbo pela beleza marmórea de um enredo previsível; ao contrário, a incompletude e a irreverência de seus poemas nutrem aquilo que Baudelaire chama de Belo “algo um tanto vago, rasgando horizontes à conjetura”. Além do mais, o poeta domina tão intensamente seu ofício  da escrita, que é livre, excêntrico e fascinante no tocante à inexatidão vocabular, contrariando a ideia de finitude, que é característica de  todo artista pulsante. 

Os versos de Sezostre nunca nos enganaram quanto à originalidade. Nas veias, há o sangue de um escritor que nos oferece, de fato, exemplos de deslocamentos semânticos que não casam com a racionalidade da língua. As diversas mutações e resignificâncias das palavras de seus versos compõem a sua trajetória poética que é apocalíptica, no sentido de se apresentar como um tsunami da linguagem, uma revolução ou uma transgressão do próprio poema. Apocalipse é uma palavra de origem grega, apokálypsis  que significa “descoberta”, “revelação e, aqui, ela norteia o sentido  amplo da poesia de Djami Sezostre.

Neste seu mais recente livro, O pássaro zero, publicado pela editora Urutau (2020), há a presença de constantes e múltiplas ousadias experimentais do pássaro nomeado “Urvögel”, que significa− pássaro primitivo, o de origem, singular: Eu abri os olhos e deixei voar/Ele o pássaro sem nome o pássaro −, a partir daí, o poeta inicia sua saga do voo sem pouso definido em busca do Outro; de outros pássaros que são os “eus” poéticos entrelaçados e ao mesmo tempo desdobrados, que na trilha dos versos vão se metamorfoseando em uma diversidade de pássaros e aves como “anu, nhambu, maritaca, pica-pau, urutau, urubu, tiziu, colibri, rouxinol, canário” e outros que expressam as várias vozes de um mesmo “eu”.  Assim como Rimbaud, Sezostre é um poeta de palavras, mas de palavras que não são somente palavras, mas movimento intenso que traduz na essência que o “eu é outro”: […] dance assim sem parar/Encontre o seu eu e seja você mesmo/ O seu par mesmo que o seu par/ Seja outro você […] O pássaro virou outra coisa,/ Não é mais ele, o pássaro país […]/ Eu sou yellow, criança índigo”. São muitas as metamorfoses performáticas do poeta que se fiam em  malabarismos vocabulares de um pássaro inquietante que desestabiliza a ordem da linguagem em um mergulho abissal por uma forma de expressão que seja inovadora, diferente. Por isso, são ousadas as criações linguísticas nos poemas deste livro, como se lêssemos e escutássemos a própria linguagem dos pássaros de Djami  Sezostre, o que se constata em “a língua dos pássaros”, poema com versos que se repetem, mas emitem um som no impacto das palavras sem nome: palavras-dilúvio, cataclismas. Aqui, lembramos do mineiro  de Cordisburgo, Guimarães Rosa, que subverteu a linguagem nas funduras de um poço vocabular e foi tão inventivo quanto está sendo Sezostre como os seus “pájjaros”.

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É possível enxergar que nos pássaros de Djami estão aqueles Outros que são ele mesmo em corpo e alma: − seus pais. É recorrente no livro a menção à mãe e ao pai, como neste exemplo: “O meu coração e o coração da minha/ Mãe morta vivo no meu coração/ O meu coração e o coração do meu/ Pai vivo no meu coração […]”. A afetividade nesta constante busca de si e da experiência humana confronta com os signos de uma visão de vida sempre expressos na voz do pássaro zero como um mantra que atravessa abismos e fronteiras entre a natureza e o homem. Portanto, na dedicatória que o autor faz aos “pássaros e insetos” está aquilo que aos olhos do poeta é sagrado, imaculado: os seres nativos que habitam o ventre da mãe natureza, assim como ele mesmo: “O pássaro zero, Djami Sezostre, não é passaru”.

O poeta mineiro é um animal apocalíptico que arranca gestos de ternura que se opõem a todo fim que não seja nós mesmos. Em seus versos ninguém comanda e ninguém obedece, pois este livro é um inventário sobre a natureza pura da linguagem, em que poemas falam uma língua anônima de gestos e sons para exprimir tal e exatamente o mistério da linguagem.

Nos voos abissais de O pássaro zero, encontramos um feixe de versos que nos tocam pela beleza da criatividade poética, como em alguns exemplos: “O poeta rasgou o peito em cena para mostrar o coração”; “A visão do espelho dava uma sensação de ruminações”; “Os pirilampos me despiam como virgens”; “O interior do menino é cheio de pássaros sem nome”; “A noite escura era uma escuridão de brilhantes”; “A janela perdeu a tramela para o anjo do desejo”; “O velho enredou a aranha na capina dos amendoins”; “A formiga agregou o lume na viagem das penas”; “O arco-íris chorou rosas durante a chuvarada”, o que muito nos lembra a inventividade do poeta matogrossense,  Manoel  de Barros, quando diz que “poesia é voar fora da asa”.  

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Mírian Freitas, doutora em Literatura Comparada (UFF), professora no IFSUDESTE/ Juiz de Fora, MG. Publicou o livro de contos Intimidade vasculhada (7 Letras), Exílios naufrágios e outras passagens – poemas – (Patuá), Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade – ensaio – (CRV), Quando éramos pássaros e outros poemas abissais (Penalux). Possui textos em revistas impressas e digitais como CULT, Mallarmargens, Acrobata, Ruído manifesto, Palavra comum, Diversos afins, Arara, Arribação e outros.

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