3 Poemas de Fernando Abreu

| |

Fernando Abreu é maranhense de São Luís. Tem seis livros de poemas publicados. Antes de Esses são os dias (7Letras) vieram Contra todo alegado endurecimento do coração (7Letras,2018), Manual de Pintura Rupestre (7 Letras, 2015), Aliado Involuntário (Exodus, 2011), O Umbigo do Mudo (Clara Editora, 2003) e Relatos do Escambau (Exodus, 1998). Letrista de música popular, tem parcerias com Zeca Baleiro, Chico César, Marcos Magah e Nosly, entre outros.


Uma Breve História do meu Sangue

o sangue de minha mãe veio na frente
pelo mar, da maneira que todos conhecem
pacote de viagem compulsório
classe popular nos navios da Companhia Geral
do Comércio do Grão-Pará e Maranhão
o sangue espirrava dos tambores
que os homens tocavam para ela
o sangue irrigava o sexo das mulheres
que dançavam para ela
que não tinha permissão de sair de casa para ver.
o sangue de minha mãe tocou trombone
no jazz alcino bílio pela boca do meu avô
de quem só existe uma única foto quase apagada
e silenciou no sorriso murcho de minha avó
na primeira vez que viu os netos
ali eu já era o pretinho da mamãe
especialista em cafunés pós-almoço
até o dia em que ela disse que ia embora
o caçula chorou por dentro a tarde inteira
e nunca mais brincou de matar
aqueles piolhos imaginários
mesmo ela nunca tendo de fato partido
o sangue do meu pai, branco pobre da baixada
chegou um pouco depois despachado quem sabe
dos açores, quase um filho da lua,
o vermelho não era de abraços nem de nada disso
a timidez ajustou-se à armadura austera
que lhe protegia o coração e o olhar irônico
o humor reservado aos momentos à mesa
mas o amor escapava cedo ou tarde
pelas fissuras dos seus gestos e era assim
a família dela foi contra, com razões de sobra
para duvidar dos sentimentos de um branco
mesmo um “quase preto de tão pobre”.
mesmo assim eles se casaram
e viveram juntos por mais de meio século
e ele permaneceu apaixonado por ela
e ela nunca mais precisou imaginar as pessoas
rindo e dançando nas festas porque
agora ela ia em todas que quisesse
enquanto o marido recluso ficava em casa
feliz com a felicidade daquela mulher sofrida
que nunca desperdiçou uma chance
de iluminar o mundo com seu riso
esse é o relatório resumido do meu sangue
como se eu estivesse em alguma espécie de blitz
as palavras acima são meu salvo-conduto.
de qualquer forma, elas também estão em cada sílaba
de cada poema escrito ou por escrever
com elas exerço meu direito de passagem


Nesses Dias

se você estiver um dia
dirigindo pela avenida carlos cunha
em direção ao centro da cidade
no final da tarde
mais ou menos na altura do shopping
lembre de evitar a faixa da direita
por causa dos ônibus, das motos e
principalmente dos carros que estão
saindo do hospital
pessoas voltando para casa
cansadas a fim de um banho mesmo frio
preocupadas com ameaça de demissão
ou preocupadas com a doença de parentes,
ou com o resultado de seus próprios exames,
que só ficarão prontos na próxima semana
você tem seu emprego, mas também está preocupado
levando remédios e frutas para alguém
e pensando na própria saúde, querendo
um pouco mais de tempo
então fique na faixa do centro
o tempo é suficiente
para trocar de faixa depois do semáforo
e entrar na ponte sem precisar
acelerar muito disputando espaço
esse é o tempo e o espaço que temos
para compartilhar de um jeito ou de outro
forçar a passagem não vai garantir mais tempo
nem mais espaço nem mais vida
e você tem o som do carro ligado
e um jovem cantor está lhe fazendo um pedido
bem sentimental, “se você passar um dia por tal lugar
onde vive uma garota, etc, etc…”
fazendo você desejar escrever um poema
que começasse como um “se”
e que fizesse você pensar naquelas pessoas
nos abrigos nos ônibus e nos carros
com um pouco de intimidade
como se pudesse dividir por um instante
com elas essa canção ou
a ideia de um poema


Aptidão

capaz de humilhar a vênus calipígea
mas sem aparentar saber disso
ela desce do carro e segue apressada
enquanto mexe no celular
está atrasada para alguma reunião importante
e isso toma toda a sua atenção
mas a bunda perfeita apertada em uma
saia de grife pede mais consciência por parte
de sua dona executiva.
um pouco do balanço que a deixaria
mais de acordo com sua natureza
pois mesmo no mundo ingrato das finanças
um ondular espontâneo com um discreto
toque do que os tolos chamam de vulgaridade
poderia fazê-la novamente se sentir parte
daquilo que emana um poder que o dinheiro
não pode comprar
em vez de um ativo, patrimônio de alguém
para quem a solidez a textura e a luz do corpo
são parte de um investimento.
alguém que quando pensa em balanço
está pensando em gráficos e números
longe do poderoso natural deleite narcísico
que o espelho insiste em lhe recordar
toda vez que ela sai do banho

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!