3 Poemas de Ithalo Furtado

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Ithalo Furtado (PI) possui três livros publicados ‒ “Uma pedra em cada por enquanto​”, “Dolores (e os remédios pra dormir)” e “Móveis empoeirados no peito”​, o mais recente. Seu trabalho sugere novas possibilidades de contar a mesma história e cria um ambiente transmídia que envolve outras formas de arte como música, cinema, fotografia e artes visuais. Há quase 1 ano desenvolve a intervenção urbana Escuto Histórias, Escrevo Poemas​, onde transforma as histórias das pessoas nas ruas em poesia.

Pit Stop


tão distraidamente sentados no chão do posto, não é por outra coisa que bebemos as piores
safras; não é por outra coisa que optamos pelo ruído de pigarro nas filas da conveniência; é
parte de nosso ritual de serpentes; a pele se fere à outra pele – o pit logo fechará suas portas e
nossa turma se rastejará para casa, mas voltar é o que importa, não? não é mesmo que
corremos na direção errada sempre e por pura suspeição? não é mesmo que cansamos e é por
isso – não por outra coisa – que, de tantos lugares, foi aqui que fincamos nossas cruzes?

preste atenção nos balanços da turma; veja seus movimentos; veja que ninguém faz ideia e
sonham com santa cruz de la sierra como sonham com o próximo trago; i wanna be sedated e
quem não desejaria já que este local está tomado de carvoarias nas mãos dos meninos; talvez
nossa urgência seja confundida com os efeitos, você sabe, os efeitos assustam os petrificados e
é por isso que socamos o ar esquina a esquina

acho graça que temam
os sutiãs deixados em casa
e o carinho entre os rapazes
é engraçado e faz pensar que nenhum deles
diz a verdade
isto não é espanto
é só uma rua que nunca passam acompanhados

e lá pras 3 encontramos outro pássaro lento, é um de nós, suas asas pequenas bastam, senta
um pouco, não é por outra coisa que estamos aqui, ninguém suporta mais; veja que só hoje já
pensei duas três miliquinhentas vezes em tomar o coquetel mas lembrei que no pit eu
encontraria outros desistentes – do coquetel e da loucura – então senta, bebe um pouco e
esquece; não se engane, a fuga não é um espaço pra conselhos

i wanna be sedated e não é o suficiente, eu queria ter chupado alguns meninos indecentes:
leonilson, lorca, caio e alguns amigos bonitos que me dão medo; olha pra mim, me falta forma e
sabor, eu não tenho o cheiro dos meninos indecentes; o espelho mostra que nem mesmo tenho
cheiro; a turma me dá forças, mas não me engano, um cão pede comida e é tudo que tenho

agora preste atenção na cidade etérea; consegue ouvir o som das correntes se arrastando pelo
interior das repartições e das casas muito limpas? talvez um pouco mais perto, talvez um pouco
mais perto, talvez um pouco mais perto, isto não é espanto


Leia Como se Gritasse

leia como se gritasse e quando te entupirem as veias com as substâncias
tóxicas provenientes do rancor e do cigarro se jogue num sofá velho, recupere o ar
e berre como se morresse, o direito ao urro deve ser concedido a todo cidadão
revoltado com seu ponto
com seu ônibus
com seu sexo
com seu deus
é tudo pago e nada presta

as fábricas não vão cessar
a máquina não vai cessar
não vão cessar a produção de frango o cinema iraniano moderno
nem o pai de família vociferando mentiras na ponta da mesa enquanto cospe
pedaços de bife no silêncio dos pratos
& sob a pele do medo
a violenta tatuagem anuncia a chegada
de outra pele
à frágil indumentária
nenhuma compaixão

mas chegará a noite no pequeno quarto e
trancafiado três aluguéis atrasados rede e fogão
você esquecerá que os vizinhos dormem
que o silêncio é cardíaco e com as mãos trêmulas
vai abrir a janela e ler como se
arrombasse aquelas estrelas todas


Gramofone

já no final da vida
quando entardecia
minha vó colocava o disco do alcides neves
de 1979
pra junto de meu avô
(emparedado nessas tardes)
lembrar quando ambos tinham força
pra enfrentar suas famílias
o ai-5, a falta de dinheiro
e tantas outras coisas

o disco, paciente, lânguido
entre riscos e faixas quase perdidas
os adormecia antes mesmo da terceira faixa
e era minha mãe que sempre mudava
para o lado b

de certa forma
em algum dialeto inexplicável
aquela força que parecia ter passado
se fazia possível, traduzida

o que me causava espanto
eram os indicadores se triscando
trêmulos
a quentura de uma mão na dormência da outra
firmando seu pacto íntimo

o silêncio daquelas tardes também era
uma história com seu próprio idioma
acendo as lâmpadas
as luzes me lembram
que nem mesmo as poltronas ou o gramofone
(o tempo conferiu todas as bagagens)
ninguém ouve mais alcides neves
e agora sou eu que mudo os canais pra minha mãe

as luzes me lembram
como velas no quarto escuro
que aquela força
como um pacto, como um disco
é hoje ausência química
e o sofá que ocupa o espaço das velhas poltronas
tem mais que o indicador
levemente encostado no meu

há dias – tu sabes – que é o sofá que repousa
sobre meu peito ou sobre minha coluna curva
ou sobre meu ânimo limítrofe

e eu já nem lembro mais
cada porquê de cada tatuagem
que guardei pra fazer um dia
o tempo e seu ritmo
o nada e seus signos
aos olhos de meus avós
vultos postulando uma lembrança
e aos meus
nada
o seco e absoluto
pois há muito medo de ser
o mínimo

adormeço
parece o fim
congelado em nuvens ocres
e já não é possível
distinguir as faixas
mudar para o lado b
trocar de canal sem ajuda
ou lembrar de quando éramos fortes

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