3 Poemas de Laís Araruna de Aquino

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Laís Araruna de Aquino nasceu no Recife, em 1988. É autora do livro Juventude (Ed. Reformatório), vencedor do Prêmio Maraã de Poesia de 2017.


Nós Só Compreendemos Muito Depois

(a alma é uma intensidade a que regressamos
quando concedemos às coisas o silêncio
para serem percebidas em sua totalidade.)

é perto das quatro, o sol incide
obliquamente sobre as palmeiras
o vento rege uma canção entoada pelos
pássaros e cigarras –
aquela que veio de nenhum passado

agora, uma ave branca cruza o silêncio
nós só compreendemos muito depois
esta paisagem, este corpo, esta travessia
compreendemos numa estação diversa
quando as folhas estão secas no chão
ou sabem à resina

tudo está calmo e quieto
mas ninguém sabe os mundos que o coração
do homem abriga
os bois se juntam no pasto
e tangem os rabos contra as moscas
e também meu coração tange algo
que não sei nomear

estamos no presente como em um lago
onde pousamos os pés
e não sentimos o assoalho
e de repente se faz muito tarde

quando desejamos regressar
e abrimos a porta da memória,
há um caminho que muda
a cada entrada

então, na curva de tantos dias,
deixamos um pouco do passado
agora, o musgo cresceu
range a porta

damos talvez por uma falta
mas não saberíamos dizer
mesmo isto –
nós só compreendemos muito depois


Sobre o Mundo como Vontade de Poder

para Cela

quando saltou sobre o muro e nadou na piscina
do prédio ainda em construção, tinha oito anos
e um desprezo por regras de propriedade. ela era
uma pequena Raskólnikov e também desprezava
regras estúpidas que reproduzissem a cruel dominação
que crianças pampers exerciam sobre crianças frágeis
e submissas. por isto, não era tributável das qualidades
morais em voga – dispensável dizer sobre a estética
menos que kitsch e middle class do rebanho de
infantes que frequentava. apesar disto, estava entre
eles porque quase confinavam com os limites físicos
do seu mundo. mas, então, primeiro lhe negaram os dois
reais que haviam apostado. e ela subiu com as roupas
molhadas e os bolsos vazios para o seu quarto.
depois, compreendeu que, para eles, era um tipo
selvagem e andrógino – para eles, que só cultivavam
o que entendiam e eram tanto mais fortes quando em
comum professavam desdém em clubes de desestima
alheia. outros se revezaram no mesmo papel, trocados
apenas os nomes: os ferozes padeiros do mal;
os ferozes leiteiros do mal – os arautos das
congregações dos integrados, os que vão à missa
e comungam, ou não comungam, pagam o dízimo
e se pensam mais cristãos que o cristo, os que não
vão e têm piedade de si, os cordeiros e lobos que
se alimentam do mesmo pasto. and so it goes.
então, aos poucos, ela desceu ao fundo da ilha do seu
coração, onde preferia histórias como a de Crusoé
e era, em todo seu afeto, ignorada pela civilização.
agora, lê freuds, jungs, deleuzes – e explica alguma
coisa, ora outra e não pisa o território hostil da infância.
vezenquando, se lhe perguntamos se deseja sair
em férias conosco a uma praia, diz que não gosta
de se banhar e não mostra o corpo com facilidade.
prefere, diz, alguma quinta, menos frequentada,
onde beberá bastante do vinho, falará sobre literatura
e sonhará viver como nos filmes de Rohmer.


Vida de Campo

quando chega ao campo, minha vó logo
se deixa ficar ao terraço, à cadeira de balanço,
os pensamentos para cá e para lá
como a gente descansa nessa paragem do tempo
verde, quando faz chuva, nos meses de junho a agosto
nos demais meses o mato fica seco
a gente descansa nessa paragem do tempo
e eu lhe digo que do pouco que faço
também descanso
um dia me deixarei ficar toda a semana
morarei aqui
com meus cachorros, o rumorejo das árvores
ao vento e toda a saparia
minha vó ri e diz é tão bom
nem precisa de gente
eu rio e repito nem precisa
de gente
ao longe, em uma estrada que meu olhar alcança,
um ruído de motor de carro
minha vó fala sobre o silêncio
e sua voz e o silêncio se confundem

no campo, o vento é o maestro de todas as coisas
de tudo que rege,
o ar, o balanço das palmeiras, o voo
dos pássaros e sua fala de canto,
de tudo isto, sobe o silêncio
e no corpo adentra – imenso

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