Ranieri Carli, 44 anos, professor, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta, autor de Toda Estupidez, de 2019. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, publicado pela editora Patuá. Os três poemas aqui selecionados fazem parte de Autorretrato de nossa carência.
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Recordações de Bengasi
Num consultório, com dor na costela,
O homem observa a garota de blusa
Com listras verdes e pretas que cruza
O par de pernas de forma singela.
Mirando-a como se fosse sua musa,
Ele percebe na esquerda canela
A cicatriz que seria a sequela
De uma fratura de emenda inconclusa.
Aquele talho na tímida tíbia
Com toda a bruta feiura, que exibe a
Perna canhota da jovem calada,
Deixa-o saudoso pois lembra uma estrada
Cheia de curvas, com musgo murada
Em sua cidade, Bengasi, na Líbia.
O que se deixa de espólio ao inimigo
Produz o horror esse exército que hoje
Desce-me a rua, devagar…, devagar…
Antes que chegue, abandono o meu lar,
Vou com meu povo que migra, que foge.
É necessário que a gente abra mão
De todo excesso que nos comprometa
E impeça a fuga: a cachorra cegueta,
Armário, idosos, bagagem, colchão.
Sei que perdeste bastante: o teu filho,
O par de botas, o carro sem pneus,
Livros, ovelhas, a crença em um deus
E a paz que dava aos teus olhos um brilho.
O que fazer? Sei que a gente recua
Deixando as posses de um modo gratuito,
Mas precisamos correr, correr muito
Dos inimigos que avançam na rua.
Um poeta em fuga
Para Carvalho Júnior
Abre tuas mãos! Tens a dama de copas
Contra o coringa que zomba da morte.
Foge veloz! Feito um potro de porte
Nobre e senhor, tu galopas, galopas…
Corre! Num jogo de azar e de sorte,
Rumo a distante entre as várias Europas.
Ao calcanhar já te sentem as tropas
Que te perseguem por simples esporte.
Sempre o coringa te suja a canastra:
Faltam-te um rei, um valete ou um ás
Que não percebes por trás da pilastra.
Corre até quando não fores capaz
De respirar todo o mal que se alastra
Mesmo sem fôlego, antídoto ou gás.
