5 Poemas de Ranieri Carli

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Ranieri Carli, 42 anos, professor, autor de A estética de György Lukács e o triunfo do realismo na literatura; é também poeta, autor de Toda Estupidez, de 2019. Reúne novos poemas em Autorretrato de nossa carência, a ser publicado em breve. Pretende com poesia sugerir algumas reflexões sobre os problemas que experimentamos nos dias atuais. E-mail: [email protected]


Carta para a amada distante em época de confinamento

Ficamos muito distantes, meu bem,
Encarcerados, segundo convém
À prevenção que começa na China.

Distância à custa do vírus feroz
Que determina a lonjura entre nós,
Que dizem ser mais letal que o da suína.

Um vírus que entra através da mucosa;
Daí, eu a evito de forma amorosa;
Quero que entenda e também se previna.

Tentou voltar de uma viagem a Trieste
Logo no instante maldito em que a peste
Fecha aeroportos e à Itália domina.

Tento deixar tudo dentro dos trilhos:
Estou cuidando dos nossos dois filhos,
Dos cães, jardim, mas não limpo a piscina.

Nas horas vagas, há filmes que alugo,
Cozinho massas regadas ao sugo,
Sem exageros por conta da angina.

Tenho bebido a cerveja e os afins,
O que me ajuda a viver nos confins
Muito feliz, você nem imagina.

Querendo o bem de Cecília e de Henrique,
Sonho a vacina que a ciência fabrique
(E o que pensar dessa tal cloroquina…).

Com a vacina, viria de Roma
Sem febre, tosse, coriza ou sintoma
Que se assemelhe a essa gripe assassina.

Sendo assim, como demanda o clichê:
Corro tomando nos braços você
Quando encontrá-la surgindo da esquina.

Pois não seria fantástico ver-nos
De novo juntos, imunes e eternos,
Tendo injetado no glúteo a vacina?


Do violino ao gongo

Violino hediondo, de pinho precário,
Dado aos cupins, sem a quarta das cordas;
Com arco torto em mãos frouxas e gordas,
Toca um minueto em seu ritmo ternário.

Ouve-se ao fundo uma trêmula orquestra
Que triste busca enflorar com clarim
E com trompete o minueto sem fim
Que é tracejado de forma canhestra.

Um pesadelo sonoro, tão longo
Que afronta a nossa audição ao limite
Durante todo o conjunto da suíte,
Conclusa ao sórdido estrondo do gongo.


Drama operário

Nesta manhã,
Ele desperta.
Come uma incerta
Suja hortelã

Drama operário:
Ele garimpa
A roupa limpa
Dentro do armário.

Viagem de trem
Rodando o globo,
Até Vaz Lobo
Desde Xerém.

Fazem piquete,
Cobram que lute…
Entra sob chutes
Na indústria às sete.

Dele, inclusive,
A alta engrenagem
Processa a moagem
Do que ali vive.

A indústria entrança
Longa mortalha
A quem trabalha,
Aos poucos, mansa…

Repouso e almoço
De dez segundos.
E ele no fundo
Do extenso poço.

Turno difícil
Que o torna fraco.
Sonha o tabaco,
O alívio e o vício.

Fim da jornada,
Em casa, enfim.
Com gergelim,
Toma a gemada.


O burocrata II

Sem preocupar-se a não ser com o horário,

E ainda com sono, sonâmbulo e tonto,
Entra em um ônibus no último ponto,
Rumo a entregar-se ao desânimo diário.

Computadores, papéis e carimbo
Que fazem parte do insípido limbo
No qual reside um veraz funcionário.

Calcula o tempo de cada labuta
Com precisão de um relógio e executa
Nem mais nem menos do que é necessário.

Recusa o samba das ruas ao passo
Que volta ao lar tendo ao bolso um escasso
E pobre fim de seu parco salário.

Antes de entrar pela porta já aberta,
Passa na igreja vizinha e lhe oferta
Algumas velas no altar do santuário.

Renova as forças em meio aos lençóis
Grossos do leito em que dorme depois
De arremessar o uniforme no armário…

E a ordem se impõe sem nenhum comentário.


Carta a um imigrante sírio

Esta é sua nova morada
Depois de um ano de fuga
A passos de tartaruga
Por terra e mar, camarada.

Sinta-se num lar, venha e entre,
Beba dos vinhos mais suaves.
Farei a cópia das chaves
Deste seu cômodo-ventre.

Deixo tudo à sua mercê
Para que esqueça todo asco
Que a tragédia de Damasco
Ainda produz em você.

Sei da graúda cicatriz
Que o envergonha desde a perna,
Graças à guerra que inverna
Em seu belíssimo país.

Reclama que a dor é tanta
Pois não veio a primavera
Do modo como se espera
Quando um povo se levanta.

Vem-lhe um lamento espontâneo
Se lembra o bote que chega
Sem filhos à terra grega
Pelo Mar Mediterrâneo.

Vou lhe dar afetos, banho
E um prato de arroz com peixe:
Penso que, assim, você deixe
De ser um distante estranho.

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