Raquel Gaio, Licenciada em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela UFRJ, atua nas áreas da poesia e artes visuais. Escreveu os livros de poesia “manchar a memória do fogo” (Urutau, 2019) e “das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã” (Editora Patuá, 2018). Desenvolve trabalhos entre a fotografia, a performance e o objeto investigando a esfera do íntimo, do tempo e da perecividade.
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a pele dotada de sintoma- tessitura sísmica eu você o sangue- vazios canforados
há o buraco que trago em minha boca, o dente 46 em falta
a palavra é um corvo eu vejo com a garganta riscada
o que te oferto é uma tessitura de punhos queimados
o presságio de uma cabeça castigada pelo sal
o fogo silencioso de meus semelhantes
um país devorado pelo bico de um pássaro.
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habito meridianos cheios de água
fundo em meus olhos um sol temporário
persigo o ciclo performático das mãos
tenho te difamado nas roupas e no modo como cavo os gestos
você, uma mãe anêmica, um idioma que não vinga
vivo de exercer nosso lodo
ser exposta e encardida
sedimentada e difundida.
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ter
a impostura da língua, a fé no imponderável, as patas em vigília e o silêncio
deformado- lLansol me amassando os dentes–perfumar o corpo com o pó da queda,
deixar que os objetos moldem o aspecto das mãos, aprender que um rosto já nasce
extinto- amar sua mudez e seu musgo-
banhar-se com a água da ferida, não temer seu centro, saber que seu centro é
sempre velado -mármore esquecido sob o fogo-
o que herdamos além da sede e da terra devastada, pai?
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como se a corcova habitasse a boca do
pai
como se os meridianos invocassem as carcaças extintas
como se o sangue coagulasse entre os órgãos
tudo
em mim conclama
a água, a pedra, a linhagem morta
o animal em ruína que mora na palavra.
Poemas, com uma lapidação imagética, que surpreende. Que instigante surpresa, Raquel Gaio.