Escritora mineira e jornalista, Constança Guimarães é autora de Como se fosse possível medir o tamanho do escuro, (Urutau, 2020), Ombros caídos olhando pro Inferno (Urutau, 2017) e A sereia da contorno e outras histórias (Leme, 2017). Tem poemas e contos em revistas como a Gueto (especiais Utopia/Distopia e Crianças em Guerra), Ruído Manifesto, Mirada, Germina, Laudelinas e Torquato, entre outras, e na recém lançada antologia ‘Nao há nada mais parecido a um fascista que um burguês assustado’, editora Hecatombe/2020.
spoiler de uma mulher com cabelos brancos tingidos
tenho álbuns de retrato
de papel tenho vários anos
nas fotos minha mãe meu pai
minha filha também
no álbum que minha mãe fez
quando eu era bebê ela colou recortes
do jornal quando o homem chegou à lua e da criação da minissaia
num álbum de viagem
quando eu já era mãe
colei todas as recordações
tíquetes passagens mapas fotos
desenhos de minha filha
depois adulta viajei com minha mãe
fomos juntas ao fim do mundo
temos um álbum contando a jornada
ocorre que a cada visita aos álbuns
tenho várias idades
também fora
das fotografias
e assim as memórias são como são
registros
pontos de partida
(Poema do livro Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro)
o outro lado
vi um caracol atravessando uma fenda
num vídeo do youtube
ele estica o corpo até a outra borda
durante a travessia
move a casa por cima do corpo
equilibra o centro de gravidade
com paciência convicção sabe
que vai chegar intacto
(Poema do livro Como se a gente conseguisse medir o tamanho do escuro)
Repetições
Chá
com substâncias radioativas
matou o opositor russo
não é o primeiro
nem o segundo
ninguém sabe por onde anda quem ainda faz as contas
Eu mesma já matei envenenado
personagem de romance publicado
Todo ano a produção de uvas em Jales
é destaque no globo rural
Todo ano as cidades têm árvores gigantes
iluminadas na zona sul no natal
Todo dia o número de mortos
já não emociona
mas isso acontece há décadas
sempre sem escândalo
porque sim não é mesmo
os mortos na rua
não aparecem no jornal
eles não têm todos os dentes
nem são parentes de policial
general ou intelectual
todos os dias
eu lavo meu rosto
escovo meus dentes
e almoço
às vezes janto
outras bebo vinho
normalmente não durmo
(Poema inédito)
Aleatórias
1
sem tempo para acertar contas com a receita federal
da empresa do marido
que tinha seu nome
2
cem coisas para fazer
sem nenhum minutinho
sem nada para olhar
cerveja
cerveja quente
pras crianças
comida congelada
exausta com culpa
3
sem conversa
no almoço
estrogonofe com milho
contado um a um na ponta do garfo.
arroz é impossível contar
cem japoneses juntos vendo a monalisa
nunca fui a paris
eu ia, antes de me casar
um dia, talvez
antes do meu pai gritar
que era o único jeito
depois ‘de tudo que eu fiz’
4
sol não se mede não se conta
como as gotas que ela tomou todas ontem
calor não se mede
forno ligado o gás se espalhando
as gotas os comprimidos
sem história
sem história nenhuma na vida dela sem pausa
sem café nem vodca
com comida e fome
5
o menino falou muito alto ontem
ela não ouviu.
voltou para casa sem voz. a festa
cem pessoas sozinha
o menino no colo ardia
6
tempo não se mede.
cem dias
sem tempo pra nada.
sem tempo para tomar banho. sem tempo nem pra tomar banho
sem nenhuma gota. a água acabou
cem lágrimas caem em poucos dias
o tempo se conta assim.
os dias se contam como a água se conta – em gotas.
as lágrimas se contam às vezes
os meninos sentados no sofá.
cem reais. sem reais para pagar a conta. o dinheiro acabou.
o emprego sem emprego. sem emprego
sem emprego. no jornal, empregos.
sem vizinhas
cem casas em volta. sem ninguém
a janta.
os meninos sentados no chão perto da televisão.
televisão idiota velha chamuscada.
como será que eles conseguem enxergar o desenho?
sem imagem.
quantos pixels
o tubo velho ainda se esforça.
o menino do desenho grita: olá papai, trouxe um presente?
o pai do menino do desenho havia levado um presente.
as crianças dela se entreolham.
sem reais. sem emprego. sem pai em casa
sem água. sem salário
o marido. saiu. faz tempo.
levou o dinheiro na caixa
o celular que era o telefone da casa
o que poderiam ser dias bons.
deixou, apesar, um alívio não identificado
até hoje
e junto a angústia das crianças
cem dias se conta toda hora.
cem dias se conta todo dia.
às vezes se conta com lágrimas.
7
ali naquela bifurcação tem cem saídas
leia rápido: melancolia.
melancolia é uma palavra que não tem plural. experimente sentir e contar não dá. contei cem vezes, repeti. e sozinha ela se repetia, repetia, repetia, repetia. não teve fim. não me largou
cem degraus
sobe e desce um sem
número de vezes.
a escada não conta a vida. tente não cair
a porta de igreja é grande meu véu
tem cem quilômetros
sem fôlego
ou desejo
8
sem ovos
sem leite
sem sabão em pó
sem café
sem pão sem bombril – cem vezes cem e mais uma utilidade!
as panelas sem comida
sem feijão
já tínhamos comido um quilo de sal.
muitos casos mulheres muitas camas
cama sem ninguém por aqui
geladeira com estrados congelados
eu sempre em casa só
sem tempo sem um minutinho
cem quilos.
para a comida das orcas krill
manada matilha alcateia
tento entrar e tento fugir
9
com as crianças com fome em casa
era domingo perguntaram pelo pai
fomos à janela, ver o sol e brincar com as nuvens
tinha muita gente na rua
sem tempo pra pensar
entramos correndo
bala de borracha. porrada. Tiros de verdade
a hélice do helicóptero voa a que velocidade?
(Poema inédito)