Felipe Nunes é cantor, compositor, poeta, historiador e antropólogo. Sergipano radicado em Natal (RN). Em abril de 2020, lançou o seu primeiro EP intitulado “Entropykos. Partícipe da cena literária potiguar lançou no atravessamento da primavera para o verão de 2021 seu primeiro livro de poesia “o silêncio de onde acabo de voltar” pela editora Urutau, reunindo 66 poemas ao longo dos últimos anos escritos em prosa poética.
pedagogia das marés
observei o tempo certo do sol nascer para não morrer de fome. deixei a lua nova romper para navegar. registrei o movimento das águas para voltar à terra. não foi galileu o descobridor, muito antes os tupinambás já faziam ciência ao indicar a influência lunar sobre o fluxo das águas. na praia, a luz ardia fulgurante sobre o cabeço, dali o arrais predisse o trajeto do cardume. sabe quem manda: odoyá! metade peixe, metade mulher. madre generosa a quem entregamos as nossas cabeças. quase manhã, a vazante desce lentamente e devolve os nossos corpos de água ao oceano.
iniciação em pedras
gostaria de ser iniciado em pedras, como aquelas que meditam secularmente sobre o lajedo. geométrica beleza da imperfeição esculpida pela paciência do tempo. apreender sua maneira de queimar sob o sol, deixar-se molhar pelo sereno, repousar sobre a noite e ouvir as cantigas do silêncio. largadas sobre a terra enquanto são moldadas serenamente pelas estações, adicionando à sua matéria contornos milimétricos, musgos e larvas. isso explica a sabedoria dos imortais. ododua e obaba arugbo depois de criarem o mundo, se encantaram e viraram pedras.
Instruções para dançar
diga-me palavras doces. enfeite o vocabulário, recite teus códigos para que assim construas uma linguagem que desautorize a distância. de perto, acompanho o movimento dos teus olhos a ditar o ritmo do corpo, quando devo avançar. movo os lábios na tua direção e os afasto subitamente, por provocação, para criar ritmo. largo os meus pés sobre os teus para que me carregues e refaças os caminhos. em silêncio, falaremos da nossa fome. as abelhas não precisam das palavras, dançam no ar para avisar sobre os potes de ouro guardados nos frutos. lambuzam todo o corpo. ao bater vertiginosamente suas asas, espalham pólens, engravidam a paisagem e, assim, inventam a primavera. descobrimos outra linguagem, enquanto nossos pés se perdiam na confusão da noite. no suor encharcado, somos a chuva. inundamos as porções de terra em tepoto, agora somos o mar que transbordou. tomamos de assalto aquela ilha, abdicamos do arquipélago da decepção. um dia, talvez, estaremos perdidos, dançaremos sobre a areia molhada e escreveremos com os pés — leave us alone! ao final, a língua lamberá languidamente toda seiva em recusa a abandonar o prazer.
madalena
rabiscou o nome entre pedras antigas de um lajedo para que no futuro, talvez, o pronunciem. não conheceu a esperança, no entanto, guardou entre ruínas a lembrança daquilo que gostaria de ser, dos lugares jamais visitados e da emoção desajeitada ao sentir a chuva tocar os pés. imaginou que o mar possuía o tamanho das suas lágrimas. em sua passagem, semeou a terra, cuidou de cabras e adorou rouxinóis. antes de partir, em seu último pensamento, lembrou o paradeiro das rochas na espera de que, em outra vida, reconhecesse a mulher que sempre quis ser.