4 Poemas de Gabriela Albuquerque

| |

Gabriela Albuquerque nasceu em Mogi Mirim, São Paulo. Trabalha com tradução, cinema e teatro entre Buenos Aires e Belo Horizonte. La Chica Zombie é seu livro de estreia (2021).


Das coisas que perdi

Um dente
Um companheiro
O olhar fresco
Quatro gatos
Dois amigos
A ingenuidade
A fé em Deus
A herança neoliberal
Um pedaço do meu couro cabeludo
A pele suave
Metade dos cílios do meu olho direito
A crença na família
Aquelas tardes dormindo no cinema do centro
Minha imagem vestida de noiva
A vida cômoda
Dois filhos brincando numa tarde de domingo
A tranquilidade do não pensar
Um brinco depois de mais uma transa ruim
O amor próprio
(E com isso se vão os dentes brancos,
Parte de um pulmão, meu fígado
E a ternura de uma vagina paciente)
O peso do seu corpo contra o meu
Naquele sofá branco
Numa noite quente
Há quatro anos
Quando eu ainda nem imaginava
Que era possível perder tanta coisa


Um cavalo magro

Eu sou capaz de imaginar um futuro
Diferente do que eu desejo
Eu só não quero viver nesse baú fedido
Um homem vê um filme de ficção científica
Orelhas gigantes, uma nave e muitas flores azuis
Contemplo sozinha a luz do primeiro sol
Entrando pela janela e tocando suavemente
A pele desse bebê que, por sorte, não chora
Não consigo dormir por essa crueldade
Que passa sobre mim
E se desfaz no cacho semiperfeito dessa mulher
Belo Horizonte é uma grande sucata
Talvez por isso me apaixonei quando jovem
Hoje sou feita de ferro também
Você lembra quando nosso xixi era de ouro?
Que grande besteira!
Deitados em hotéis baratos
A rede amarrada num pé de goiaba
Velho e podre
Sob uma fumaça de barro
Uma cortina tóxica e nós
Ríamos do futuro
Como quem sabe que não há nada além
Daquela pequena fresta
Daquele mato seco
Debaixo da ponte, um cavalo magro
Comendo o último capim da cidade
Esperando o dia que lhe terão piedade
E ele será um anjo
Um anjo mais notável, digo


A fábrica dos órgãos abandonados

Uma tristeza me derruba
e às vezes não existe nada senão
Órgãos aqui dentro.

Será que eles se perguntam quem os carrega
Ou isso não importa
quando você é um fígado explorado
Ou um útero em desuso?

Quem será essa que deita no chão e não reage?
Levante, panaca!
Nós seguimos aqui, trabalhando.
Seu coração tem quatro válvulas e seu pâncreas segue
Rosinha ainda que em breve seu ovário virá te buscar.
A greve é iminente.


Sugestões e reclamações
ou que as mãos não se cansem

Hablame el idioma de los insomnes
Pensemos em otros nombres para los días
Imaginemos una temporalidade más amena
Dejemos de hablar del movimento, por favor
Enseñame a abrir el tiempo
Garantizame, ahora, que no voy a perder las palavras
Ponganme en una cruz

Uma cruz invertida
Com pregos falsos, óbvio
Sou muito sensível à dor e além disso
Sei atuar de morta
Tenho três maneiras diferentes de morrer

Shiii, callémonos um ratito más

A gaveta do armário faz um barulho
E a bolsinha com farinha branca reluz
É assim que os objetos se comunicam?
Todos já veem o espetáculo da natureza pop
E eu sigo com essa pomba gigante na cabeça

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!