Nuno Rau, poeta, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Publicou o livro Mecânica Aplicada, poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. Ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras e é coeditor da revista mallarmargens.com.
d.r. com walt withman
“Este homem está deitado de costas ao meu alcance… com o cabelo preto grosso cortado rente… a cada respiração um espasmo… Parece tão cruel. É um jovem nobre… Muitas vezes não há ninguém com ele durante muito tempo. Estou aqui sempre que posso.”
Walt Withman, numa carta.
porra, Walt, todo aquele sonho deu
num beco escuro, as lágrimas
das bibliotecas secaram e a sinceridade
anda sendo vendida em cápsulas, os velhos
gênios do Ocidente – para muitos
só aqueles do velho continente (e você
está sentado ao lado deles na santa
ceia) – não guardam mais
conselhos úteis nos bolsos de seus paletós
escuros, por aqui há velhos que continuam
loucos e estão escrevendo versos incríveis,
vamos todos morrer, os que foram
publicados pela Viking Press, pela José
Olympio ou pela Companhia
das Letras e os que não foram também,
em cada canto do planeta há gente
desorientada, a libertação da alma levou
à liberação da palavra, mas nos
distraímos e ela foi correndo
ao supermercado, apesar disso
me interesso pelos corações de todos
esses poetas, infinitos rabiscos nus
e fluorescentes nas páginas de moleskines,
de tablets, smartphones, condenados
aos céus de uma Nova York imaginária,
codificados em senhas de wi-fi sob
a palavra suckcess, o mundo insulta
a beleza sempre que ela aparece, Walt,
e de nada adiantou escrever cartas
para os soldados, nem levar frutas,
tabaco, brandy, jornais e dinheiro
para os doentes da guerra, esses
que, como nós, escreviam muito mal, ou
temiam preocupar os que deixaram em casa, ou
que, depois de uma longa reflexão, tudo
o que puderam contar sobre si mesmos
era tão triste, tão triste, você devia
ter dito a eles, Walt, e com veemência,
“desçam do trem, rapazes, ele vai
para o precipício”, e não apregoar
em seu cântico uma esperança minada
pelos fatos e por essas cartas
de Deus, extraviadas pelas ruas
entre vitrines, dólares, fumaça e asfalto
agora&aqui
os deuses estão todos mortos Não
que isso nos importe: as suas vozes
ainda vagam pelo éter mesmo
que deles restem só excertos-ecos
de estrelas falsas porque intocáveis
Cobrindo a sua pele só o céu
enquanto com meus dedos quentes risco
partituras em suas curvas que são
mímeses frenéticas das esferas
celestes quando ardem pelas órbitas
como seu corpo contra o firmamento
incendeia outra vez a noite arcaica
em que o gozo das ondas lambe a areia
e cada grão murmura essa alegria
uns
sem comportar o fardo de ser um
no impossível esforço convergente
o centro habita um sítio muito alto
e meu vetor centrípeto se esvai
nesse abismo ao avesso onde a queda
é uma escada infinita que se arroja
chão acima até se perder na treva:
cair assim exige força e método
É uma coleção de fragmentos
encadear os dias um no outro
– duas identidades divergentes
amores que se vão como estilhaços:
viver é divagar no espaço entre
ilhas de um arquipélago em conflito.
queima de arquivo
o que daqui se desenrola:
fio tenso
p___a___v___i___o
até a dinamite
do passado
perdida num século
explosivo por si
mesmo, combustível
fóssil da memória
que abre
a brecha
no lacre dos
calendários por
onde os estilhaços
passam
até atingir
e incinerar
a carne do seu
pensamento, ferida
que lateja quando reflete
a própria imagem
em sua contra-
face, a paisagem,
escombro.
Eu gosto muito de poesias dispostas desse jeito, fugindo ao modelo cansado centenário. Eu vou escrevendo a minha poesia distanciada das luzes … quando paro à beira da estrada, vejo o caminhão do Nuno Rau passar repleto de luzes… as minhas luzes internas acendem e mostram-me que estou a poucas luzes da vida!
Pois é, Nuno, jogamos dados (há jogo mais arriscado que o escrever?) e continuamos jogando e talvezaté possamos construir o infinto em um livro. Como vai a revista?
Nuno Rau tem um estilo próprio para encadear sígnos linguísticos, e que, menos se espera, se transformam em sígnos poéticos, mas sígnos poéticos
que deixam para o leitor aquele barthesiano prazer da leitura.