Lubi Prates (1986, São Paulo/SP) é poeta, tradutora, editora e curadora. Tem quatro livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018; sin país, 2018, Uruguai). “um corpo negro” foi contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia e está em processo de publicação na Argentina, Colômbia, Estados Unidos e Espanha, além de ser finalista do Prêmio Jabuti e Prêmio Rio de Literatura. Tem diversas publicações em antologias e revistas nacionais e internacionais. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetas, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018) e também participou de outros festivais literários no Brasil e em outros países da América Latina. É sócia-fundadora e editora da nosotros, editorial, e é editora da revista literária Parênteses. Dedica-se à ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. Atualmente, é doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano, na Universidade de São Paulo.
mátria e/ou terra-mãe
repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.
mas não é mãe
se permite
que te arranquem
o solo e os pés
no mesmo instante
não é mãe
se inventa um navio
quando te jogam
ao mar
se força as ondas
pra que chegue
mais rápido
ao desconhecido
não é mãe
se permite que grite
até a rouquidão
mas num idioma
que ninguém compreende.
repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação.
de onde eu vim
pra onde sempre vou
eu chamo pátria.
não foi um cruzeiro
meu nome e
minha língua
meus documentos e
minha direção
meu turbante e
minhas rezas
minha memória de
comidas e tambores
esqueci no navio
que me cruzou
o Atlântico.
para este país
para este país
eu traria
os documentos que me tornam gente
os documentos que comprovam: eu existo
parece bobagem, mas aqui
eu ainda não tenho esta certeza: existo.
para este país
eu traria
meu diploma os livros que eu li
minha caixa de fotografias
meus aparelhos eletrônicos
minhas melhores calcinhas
para este país
eu traria
meu corpo
para este país
eu traria todas essas coisas
& mais, mas
não me permitiram malas
: o espaço era pequeno demais
aquele navio poderia afundar
aquele avião poderia partir-se
com o peso que tem uma vida.
para este país
eu trouxe
a cor da minha pele
meu cabelo crespo
meu idioma materno
minhas comidas preferidas
na memória da minha língua
para este país
eu trouxe
meus orixás
sobre a minha cabeça
toda minha árvore genealógica
antepassados, as raízes
para este país
eu trouxe todas essas coisas
& mais
: ninguém notou,
mas minha bagagem pesa tanto.
***
Ele não me viu com a roupa da escola, mãe? (Marcos Vinicius da Silva, 14 anos, assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro)
e ainda que
eu trouxesse
para este país
meus documentos
meu diploma
todos os livros que li
meus aparelhos eletrônicos ou
minhas melhores calcinhas
só veriam
meu corpo
um corpo
negro.
condição: imigrante
1.
desde que cheguei
um cão me segue
&
mesmo que haja quilômetros
mesmo que haja obstáculos
entre nós
sinto seu hálito quente
no meu pescoço.
desde que cheguei
um cão me segue
&
não me deixa
frequentar os lugares badalados
não me deixa
usar um dialeto diferente do que há aqui
guardei minhas gírias no fundo da mala
ele rosna.
desde que cheguei
um cão me segue
&
esse cão, eu apelidei de
imigração.
2.
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão selvagem
esqueça aquela ideia
infantil aquela lembrança
infantil
de sua mão afagando um cão
de sua mão afagando
seu próprio cão
ficou em outro país
ironicamente, porque a raiva lá
não é controlada
aqui, tampouco:
um país que te rosna
uma cidade que te rosna
ruas que te rosnam:
como um cão
: selvagem.