5 Poemas de Patricia Laura Figueiredo / Pat Lau

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Patricia Laura Figueiredo, entre São Paulo, onde nasceu e se dedicou à poesia e ao teatro desde cedo, e Paris, onde mora desde 1990, amadureceu seus poemas numa vida dedicada a tornar o poema uma
experiência essencial. Publicou o seu primeiro livro de poesias, bilingue francês-portugues “Poemas sem nome” pela editora Ibis Libris e seu segundo “No Ritmo da Agulhas”, em março de 2015 pela editora Patuá. Participou de várias antologias, no Brasil e na Alemanha e também em diversas revistas digitais de literatura e poesia. Em março de 2016 publicou pela Editora Dasch seu terceiro livro de poemas » poemas bebês » sob o nome de Pat Lau. Atualmente trabalha seu primeiro romance em língua francesa.

Imagem: trabalho de Guido Cavalcanti


em segredo

que algumas coisas continuem
nos acompanhando em segredo
que a água entre nossos dedos
que o gesto desamparado
que o murmúrio derradeiro
que o medo o medo o medo

que a recém inaugurada
livraria da cidade
que a ternura do banco
que o desbotado do traço
que o pacto com o silêncio
que a praça a praça a praça

que algumas coisas continuem
nos socorrendo caladas
que a voz enrouquecida
que a vida despreparada
que o beijo que desafia
a infância abandonada

que a fala a fala a fala
que algumas coisas continuem
na coragem da viagem
no encontro com si mesmo
na aliança com o pequeno
na certeza do improvável

que algumas coisas permaneçam
nos guardando em segredo
nos dedos nas águas nas praças
nos gestos na entrega na fala
no consolo do vento
na miséria que apunhala

que a vida que não existia
que a neblina na vidraça
que o papel preto ardendo
que o lamento o lamento o lamento
que o que continua é o efêmero
no anseio no quarto desarrumado


lamento

vivemos pobres
nosotros
aqui do nosso lado da selva

pobres e apressados

a dor das bacias
do ventre dos braços
a dança das águas

cotidiana

martelando na pele
nos tornou tempo a tempo
mais e mais ágeis

olhos grudados na madrugada
vigilantes despreparados

cada pulo de rato
cada grasnado de corvo
cada miado de gato

nos acalenta e afasta
somos mestres e guias
desse imenso pasto

dos corredores estreitos
dos muros fissurados
inventamos passagens

língua a língua
pelo e lábio
nos refletem
e nos apagam

somos assim miseráveis
donos dessas pontes pequenas
anos de cóleras e pragas
não nos ensinaram nada

somos nus pobres
e a prova
do nosso próprio milagre

em nossos mares sem comércio
casco sem bandeira
nem pátria
uivamos

nos ventos úmidos
deslizamos

invisíveis

ecos de perdas e gargalhadas

sem âncora
sem velas
sem barco

peixes
peixes
peixes
e
peixes

únicos ocupantes
testemunhas timidas
e guias dos repetidos
naufrágios

vivemos livres
nosostros
aqui na outra face
do mundo

livres descalços
e fartos


***

hoje o dia será vazio
vazio de lá e de cá

vazio desarrumado
vazio encurralado

deus engavetado
sem respirar


crianças e reis

é entre você e eu
esse parque
ninguém
nem você saberá
que passamos
nossas tardes aqui

nem o vento
nem as folhas
nem os pássaros
pouco importa
quem você será
quando crescer

se pobre
miserável milionário
você estava aqui comigo
nessa idade
onde todos os homens
são reis


***

melhor ir pra bulgária
sem sola e sem sapato
desapertar esses laços
cada dia mais apertados
leves e desacostumados
rindo do que nunca soube rir

melhor o vento da manhã gelada
tartarugas abraçadas
longe dos olhos doces das nuvens

(impressionada com tanta intimidade
com o que parece te conhecer tão bem
monstro que não sorri só pra mim)

double face
diferentes instrumentos
veneno que não deixa rastro
nem mancha nem fim

melhor me proteger na esquina molhada
dos tiros dos guardas chuvas
de pontas envenenadas
técnica afiada uma só picada
nas coxas enquanto dançava
nas calçadas molhadas
sem pedido de desculpas
nem mal estar

o glamour o profissionalismo
e a morte
no mesmo lugar

melhor cuspir
esse gosto amargo
essa falta de afago
enxurrada de gargalhadas
vomitadas sobre armadilhas aqui e ali
que você teima com tanto zelo
em nos preparar
a liberdade vibra na ponta da faca
a liberdade vibra na ponta dos dedos
na pele e no medo
melhor isso tudo que se desmancha
vai embora
chora
que acorda e molha
e me deixa irremediavelmente
feliz e envergonhada
nesse mesmo lugar

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