Alex Simões é poeta e performer. Tem quatro livros publicados e uma série de poemas em antologias, coletâneas, revistas e sites nacionais e internacionais. Participa de importantes saraus, festivais literários e eventos multilinguagens na Bahia e fora dela desde os anos 90. Em outubro vai lançar “no meu corpo o canto: #experimentoscomletrasurbanas”, livro de artista em coautoria com o Coletivo Tanto Criações Compartilhadas. Tem um blog: toobitornottoobit.blogspot.com.br
Foto do poeta por Caio Lirio.
a mulher de Lot é um artista
a mim parecem o músico e o seu instrumento
uma condensação do que me faz a arte.
não é o que escuto ou vejo, mas a parte
que me toca é o ser no exato momento
pessoal e intransferível. não o sentimento
que emite quando toca um tema, mas o que arde,
queima mesmo, faz calo, dói e, sem alarde,
o que doeu no ensaio virou sedimento
porque não é mais um que toca o que é tocado,
são uma coisa só: ação em simbiose,
que faz sublimação do suor: vapor al’Ado
a ponto de fundi-los em inversa osmose
num gesto ensimesmado e concentrado tal
que o movimento esculpe uma estátua de sal.
aja o que ou ver
aja o que ou ver
hoje o que a
verá só tem
haver com
o que
não a ver
navios.
não haverá
o que houver.
ouve bem,
só há verões
porque a ver
hemos, diz
traídos
vêm
se
m
r
e
m
o
s
ora pro nobis
são dias muito tristes, pesarosos,
de mortos alinhados em fileiras,
de néscios de si mesmos orgulhosos,
cavando sepulturas e trincheiras
que, abertas em fendas paralelas,
nos dão a sensação de andar à beira
entre umas e outras, nonada além delas
ou o que antes talvez fosse algum muro
pra quê? “Ora direis, ouvir estrelas”.
equilibristas somos, no escuro,
se pardos, pretos, mais ainda invisíveis,
se indígenas, pretéritos futuros.
desviar de explicações, as mais plausíveis,
para legitimar os que cerceiam
as pautas silenciadas, verossímeis,
dos corpos dissidentes que tateiam,
ou lendo braile ou se reconhecendo,
se empurrando entre si e se alardeiam
prioridade às mágoas que vão tendo
pessoais e intransferíveis e exclusivas
e inintercambiáveis, vão não sendo.
por tanto tempo tantas evasivas
usadas pra abafar as próprias dores
que a afirmação se faz por negativas,
reinvindicando só falar de amores
e existir. enquanto lá, do outro lado,
lutam para expressar os seus rancores,
o desejo pelo outro aniquilado,
e chamam liberdade de expressão
o ímpeto fascista recalcado.
não é possível fazer comunhão,
exceto pra lembrar que ora pro nobis
dá tempo de roubar pro pobre o pão,
rezando a missa e a carne de pobre
sangrando as mãos de quem arranca os ossos
da terra em extrema unção urbi et orbi.
são dias muito tristes, pesarosos,
de mortos alinhados em fileiras,
de néscios de si mesmos orgulhosos.
traquitanas
veja bem por onde anda:
há objetos espalhados por todos os cômodos
de modo desordenado e indecentemente perigoso.
são restos de notícias que escuto todos os dias
e leio e vejo também.
não consigo pôr ordem na casa
porque não há nenhum sentido em pôr ordem,
menos ainda em progresso.
o que me dá aflição não é o terror
que vem de cima,
mas o silêncio pontual quando podia um grito
dizer o nosso desespero,
mas não.
há tanto barulho todo o tempo,
os decibéis explodindo nossos tímpanos
porque eles não querem escutar
o próprio silêncio que aquiesce
com o horror autoritário que medra em nossas esquinas.
o caos não é meu,
é nosso.
ao sair, cuidado ao atravessar a própria garganta.
vai que uma traquitana derrubada enquanto
lia um jornal lhe faz cair e gritar:
quero
ser
quem
sou.
efeito manada
lemingues são pequenos roedores
geralmente encontrados no bioma
do ártico, nas tundras. solitários,
no entanto, reproduzem-se, mas tanto,
que, a cada quatro anos, um fenômeno
se repete e controla a explosão
demográfica desses que seriam
talvez em maior número que os ratos
não fosse a natureza e sua ironia
que faz com que esses seres lá do norte
ao se encurralarem entre si mesmos
desesperadamente corram em fuga
por um novo habitat mais confortável,
seguindo os que, na frente da corrida,
geralmente se esbarram em um precipício,
um mar ou um rio em torno às frias tundras.
porém, como não têm guelras nem asas,
se lançam no vazio, seco ou molhado,
promovendo um espetáculo suicida
intitulado efeito manada.
tais como os roedores, nos portamos
por tantas vezes pateticamente,
atarantados por já sermos tantos,
sem sabermos por que nos apinhamos,
que essa vontade de sair correndo
atrás de qualquer um a ser seguido
nos acomete de modo frenético
lançando-nos no vácuo de quem passa
à nossa frente e quer nos liderar
servindo de modelo ou objetivo
dizendo onde e como deambular.
e vamos claudicando nos abismos
resfolegando no fundo do mar,
roendo as unhas, bordas descobertas,
nem sequer entendendo onde estamos
e já querendo estar em outro lugar.
astrolábio de 7 faces (1ª face)
narro o erro. deambulo pela cidade, fazendo botânica no asfalto. as palavras me guiam porque não sei ler mapas. sou todo olvidos. ciclovio para o talvez último abraço em mainha e olho tudo ao redor sem me perder na batida oca do peito. atravesso, do centro a itapagipe, uma ítaca de onde não vim. pratico ordinariamente a cidade: sou um homem preto, gay e lento. salvador ora me estranha, ora é minha.
Sobre os poemas:
“A mulher de lot é um artista” é inédito em livro e foi recentemente contemplado pelo Edital Estou Vivo?, Edição 1, em Salvador. Disponível em: https://triploaproducoes.wixsite.com/estouvivo/sobre
“Aja o que ou ver” e “ora pro nobis” são inéditos em livro.
“Traquitanas” foi publicado na Revista Miolo, vol. 2, verão 2019. Salvador, EBA/UFBA.
“Efeito manada” foi publicado no livro trans formas são (Salvador: organismo, 2019).
“Astrolábio de sete faces (1ª face)” integra o livro no meu corpo o canto:#experimentoscomletrasurbanas (Salvador: Tanto, 2020, no prelo).
Fabulosos poemas! Atemporais e urgentes no hoje. Alex, uma voz poética essencial para o Brasil.