As Múltiplas Grafias Negras na Poesia de Alex Ratts

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por Maria Dolores S. Rodriguez. Artista, professora e pesquisadora. Escreve ensaios, poemas e críticas artísticas e culturais. Às vezes, fotografa e performa. Metra e doutoranda em Literatura e Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.


O livro Beira-marinho, de Alex Ratts, lançado pela Organismo Editora, na coleção “contemporaneidades periféricas”, materializa a força de uma corporalidade negra que se apresenta a partir das nossas existências. As poesias e os grafismos de Ratts afirmam a vida – a dança, a música e o poema, como o canto das mães e das avós, que assobiam melodias enquanto passam o café e executam movimentos, sons, gestualidades de uma corporalidade negra que desobedece ao desejo de que sejamos apenas massa disforme na maquinaria do mundo.

Com um poema também se dança. E Ratts expressa uma coreopoética negra, para pensar com André Lepecki, apresentando a literatura como mais uma invenção, mais uma criação possível no conjunto de formas das inscrições negras no mundo. Leda Maria Martins, anunciando as escritas do corpo, diz: “contas, sementes e conchas, assim como certos desenhos, funcionam como morfemas formando palavras, palavras formando frases e frases compondo textos, o que faz da superfície corporal, literalmente, texto, e dos sujeitos, signo, interprete e interpretante simultaneamente” (MARTINS, 2002, p. 80).

A poesia em Beira-marinho, por sua vez, aparece encarnada na vida. Negando uma acepção romântica de uma arte e de um fazer poético apartados, ela expressa uma episteme negra revelada nas experiências compartilhadas como frestas de nossa existência, escritas com o corpo, contendo em si o gesto, o ato, a fala e outras linguagens expressas, então, dessa corporalidade negra. Assim como a semente, a concha e a cabaça, mas também o alguidar e a quartinha, a poesia de Ratts também escreve e diz e fala e grafa a passagem desse corpo em trânsito, em movimentações, em dança e canto nesse tempo inventado pela experiência da afro-diáspora, onde o espaço e o ser aparecem sem distinção. O espaço é o ser: “a diáspora está entre as mãos, as cabeças, os pés/ nas cartilagens, nas vértebras/ sem medidas” (RATTS, p. 35, 2020 – poema “Diáspora”, dedicado a Rui Moreira e Bethania Nascimento Freitas Gomes).

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Pensando com Nadir Nóbrega, quando diz sobre um modo de definição da estética negra em dança, “a polirritmia, o policentrismo e o sentido holístico são componentes executados de forma sutil e, naturalmente, integrados aos movimentos dos corpos negros” e esses corpos, por sua vez, “são corpos que dançam, diariamente, transitam pelas ladeiras, pelos becos, pelas comunidades e terreiros, pelos grupos de samba e também pelas escolas públicas e privadas, do ensino fundamental e médio” (NÓBREGA, 2017, p. 46). É esse mesmo corpo que escreve os poemas.

Tal qual um sound system, o autor monta o seu aparelho de som e materializa, com as palavras, com seu movimento e seu flow, a presença de uma comunidade que se reconhece aqui, nos paredões de pagodão em Salvador, mas também nas aparelhagens de São Luís e nos batuques dos congados, de Minas e Goiás. Alex Ratts nos convida à dança.

A poesia aparece não apenas como costura, mas como a própria linha, a própria fibra do tecido, o poema como gesto, como movimento, como ginga, risco e vulnerabilidade, disposto aos perigos, como a vida – o poema, a arte não como traduções da existência ou da experiência, já que o próprio autor aponta para uma intraduzibilidade da existência e experiência negras (“céu é algo distante […] orum é outra coisa” – RATTS, p. 55, 2020). Sem tentativas de falso apaziguamento e sem facilitar o caminho, Beira-marinho nos desafia.

Esse lugar inventado pelo poeta, onde ele dança, canta e grafa, onde ele, enfim, vive, é o espaço e o tempo da poesia, o espaço e o tempo da vida negra.

E por falar nisso, o que seria da água sem a geografia da pedra?


REFERÊNCIAS
LEPECKI, André. Coreopolítica, Coreopolícia. Florianópolis: Ilha, v.13, n.1, p.41 – 60, jan/jun, 2012.
MARTINS, Leda Maria. Performance do Tempo Espiralar. In: RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia (Org.). Performance, Exílio, Fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2002. p. 69-91.
OLIVEIRA, Nádir Nóbrega. Tentando definir a estética negra em dança. Revista Aspas, v. 7, n. 1, p. 34-50, 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/134013. Acesso em: 5 out. 2020.
RATTS, Alex. Beira-marinho. 1. ed. Salvador: Organismo Editora, 2020.

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