Os restos que definem um vazio fantasmagórico

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Por Edmar Oliveira, psiquiatra e escritor.

Confesso que fiquei receoso da missão que Aristides me incumbiu. Ele tinha resolvido fazer um inventário sobre os anos de governo de um “Suposto Presidente” que elegemos e me pediu para fazer um introito ao primeiro ano de um pesadelo que saiu das urnas.

Aristides resolvera anotar em forma de diário as consequências de um tempo em que “a ignorância entupiu todos os poros e colocou em xeque a civilização”, no calor da hora, o que implicava contradições típicas desse tipo de anotações.

Não era disso que eu tinha medo, por já conhecer a competência do raciocínio do autor e a minha concordância com o grosso de suas opiniões políticas. O que eu temia era ter que reviver um ano que eu tentava esquecer. Pelo absurdo de um desgoverno que tentava apagar todas as conquistas acumuladas por anos e anos de lutas, enquanto retirava direitos trabalhistas, possibilidade de aposentadorias e procurava entregar aos patrões maiores facilidades de acumulação de capital, destruía o meio ambiente, as regulamentações protetivas, liberava o uso de armas, atacava a autonomia universitária, entre outras medidas inimagináveis.

Foi um ano de competente destruição de um estado de direito, enquanto as instituições que proporcionaram o golpe de 2016 assistiam à “terra arrasada” e aos ministros do governo, tresloucados, falarem e fazerem absurdos, enquanto o César da economia – o “Posto Ipiranga”, como o presidente o chamava, deixando claro que não interferiria – colocava em prática as desregulamentações de leis protetivas para agradar ao neoliberalismo triunfante, nesse primeiro quartel do século XXI.

Se os patrões da economia globalizada aprovavam as medidas econômicas do todo poderoso Guedes, o tal “suposto” podia ser um preposto a brincar com o cargo que recebera das urnas. Só que o brinquedo tinha que ser repartido com filhinhos mimados que queriam governar com o papai. E os ministros saídos de um pé de goiaba, das pragas de um bruxo astrólogo que mora nos EEUU, perdidos no espaço ou incendiando uma terra plana, ou ainda, um ministro da deseducação que delirava com uma plantação de maconha nas universidades públicas, propunha absurdos. E, inacreditavelmente, tomaram os jornais com manchetes dignas de um tabloide sensacionalista e, ainda assim, levados a sério pela nossa mídia.

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Entendam, então, que mesmo acostumado com a loucura, por dever de ofício, não queria reviver o dia a dia de um país que enlouquecia a olhos vistos.

Porque não era uma loucura individual ou de um grupo, mas a loucura de um país com mais de duzentos milhões de habitantes.

Entretanto, logo nas primeiras páginas, meu receio se desfez. Aristides começa esse diário no dia em que a esquerda descobriu que não conhecia o país que governara por mais de quinze anos. O candidato de extrema direita, um farsante e desacreditado militar, expulso das forças armadas – que a esquerda achava o mais fácil de derrotar – vence a eleição, derrotando um preparado professor universitário, no dia 28 de outubro de 2018. No contar dos votos, reconhecíamos que voltaríamos no tempo. Não tão ligeiro como foi.

O autor insinua que mesclará os acontecimentos e implicações da política com o que lhe acontece no cotidiano. Desarmou meus temores. Fiquei curioso acerca de como se passaria esse ano entre jovens conterrâneos no interior e na capital de um estado do Nordeste. Muito longe do que foi a minha realidade por aqui. E a leitura se fez fácil.

Antes da posse do “Suposto Presidente”, Aristides descobre como a maioria de nós que “a direita envergonhada colhe frutos e se torna a direita orgulhosa”.

Neste momento, eu fui arremessado para muito depois no tempo, numa discussão entre Janaína Paschoal e Marcelo Freixo (diga-se de passagem, que até eu reclamei da acolhida que Freixo fez à fascista) em que Janaína pergunta, mais ou menos, se Marcelo não se dava conta de que a opinião hegemônica das esquerdas não deixava que os discordantes expressassem sua opinião, que a hegemonia da esquerda empurrava religiosos, conservadores, adeptos do senso comum para uma redoma incomunicável e que a eleição de Bolsonaro permitiu que eles pudessem se expressar livremente (estou citando de memória, não sei se foram essas as palavras que ela usou). É isso! Espantosamente nós não conhecíamos a maioria das pessoas e falávamos para nossa bolha. Quando a bolha deles foi quebrada pela eleição da direita pela maioria, a opinião livre que fora oprimida nos chocou. Mas ela sempre esteve ali. Não estou dizendo que não foi uma invasão do absurdo, uma avalanche das ignorâncias represadas, mas procurando entender o que a represou e a reprimiu

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tanto, para provocar a tempestade trazida por Bolsonaro. Apenas par tentar entender que a avalanche que “entupiu todos os poros e colocou em xeque a civilização”. Bolsonaro foi mera materialização de uma maioria conservadora silenciada.

E a esquerda aprendia ali dolorosamente. Esse pequeno exemplo colhido ainda antes de terminar o ano de 2018 do diário de Aristides, apenas revela que, deixando correr livremente suas associações e vivências, o diário do “Suposto Presidente” vai permitir um diálogo com as indagações e inquietações do leitor para refazer perguntas sobre o que nos aconteceu. E posso garantir que o leitor encontrará inúmeras passagens com essa função, ao longo do texto.

Mas também é doloroso acompanhar o acordar de Aristides para o absurdo que viveríamos. É natural. Um professor universitário no interior do Piauí está muito distante do ciclo de poder que irradia os absurdos, apesar da internet diminuir essa distância na velocidade da luz. Mas o que veremos nesse ano fatídico são destruições mais rápidas que a velocidade da luz. E um autoritarismo digno de um buraco negro que tudo suga.

Logo em janeiro, Jean Wyllys, que havia cuspido na cara de Bolsonaro na sessão de impeachment de Dilma, percebeu a encrenca em que se metera e exilou-se voluntariamente. Lula, preso, foi impedido de ir ao enterro do irmão, o que já mostrava a gravidade e a retaliação do autoritarismo que começava a nos governar. Enquanto o discurso para o mundo e a fuga da coletiva, em Davos, nos mostrava a falta de argumentos no poder. Daí o perigo da força, quando substitui alegações racionais.

Em alguns momentos o diário é tão eloquente que uma frase solta numa folha inteira é bastante para entendermos o não dito. Como no dia 02 de março: “o senhor sabia que eu devia” (no começo da folha) e “Durma bem, Arthur” lá embaixo, deixando antever no branco do papel o drama do ex-presidente preso, prisioneiro político num estado de exceção. Noutro momento, uma frase ou número em enorme grafia no meio da página diz o que tem de ser dito, como o “39” nos quilos de cocaína transportados no avião presidencial.

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De Floriano-PI, Aristides segurando um cartaz com uma frase de Celso Furtado, se acha em comunhão com o povo em levante em todo o país (confesso aqui que naquele dia, no Rio, achei a manifestação pífia e temia que não conseguíssemos segurar o povo na rua).

Em suma, o diário de Aristides é necessário para a reflexão do tempo em que vivemos. Porque agora “ninguém larga a mão de ninguém”. Mas precisamos ir além da bolha. A internet mais desuniu que nos uniu. Facilitou ficarmos perto sem estarmos juntos, mas também podemos “bloquear” quem não gostamos, sem precisar brigar. Tira-se quem não se gosta da bolha com um peteleco. O indesejável pode continuar na bolha para os outros, para mim, não. Cada grupo é único com os “amigos” que desejamos. Isso só é possível no espaço digital, não no espaço real. E, claro, falseia a realidade.

São angústias em que os dramas pessoais se entrelaçam às tragédias que nos atingem, enquanto sociedade é seduzida pelos avatares do fascismo. O drama íntimo e a tragédia coletiva produzem restos angustiosos que definem o tal vazio fantasmagórico, que tirei do texto para nomear esse introito.

Se “a função do historiador é lembrar aquilo que a sociedade insiste esquecer”, o diário do professor Aristides lembra tragédias que queremos esquecer e a necessidade de juntarmos as armas para a batalha. Apenas, como diz o subtítulo desse capítulo, localizamos a dor. E estamos ainda num primeiro ano dos quatros que o “Suposto Presidente” tem o direito de governar.

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