O que fazer com os escombros deixados por nossos mortos?

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Resenha de Emília Soares, com participação de Aristides Oliveira

Recentemente fomos surpreendidos com a série lançada na Netflix “A Maldição da Mansão Bly”. Para muitos espectadores apressados, o tema seria aquela velha e batida historinha de terror, cheia de fantasmas e assombrações com sustos-padrão. Felizmente não é apenas isso, o que provavelmente afastou os fãs do gênero.

O que há por trás daquelas paredes escuras?

O amor pode ser inconveniente e a morte também. Entre a existência e a transcendência enxergamos o desejo. A história nos faz refletir como, de fato, a morte não é o fim. A culpa, a dor, a saudade e o referido desejo não cessam como um corpo sem rosto afundado no lago.

Para além da vida e da morte, para além até mesmo de uma alma, existe uma memória. A série é claustrofóbica e repetitiva tal como uma memória a qual nos aprisionamos para tentar viver momentos simples, mas de glória, ou para reviver o nosso inferno pessoal.

Para onde vamos quando morremos? De que forma morreremos? Se morre de amor? Quantas almas carregamos no bolso quando agimos na liberdade de um egoísmo hedonista? Será que dentro do nosso egoísmo particular é que reside a tão sonhada felicidade? É possível ignorar os vivos e os mortos?

Não, não é possível ignorar o que se passa na nossa memória involuntária. Ela nos captura em um átimo de segundo, bate à porta, nos tranca e rouba a chave. As pessoas queridas que se foram podem se tornar o nosso fantasma de cada dia. Não sabemos para onde iremos quando morremos, mas sabemos para onde os nossos mortos foram. Algumas pessoas não morrem nunca, não querem morrer porque não somos capazes de deixá-las partir.

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O amor mata. Sempre foi capaz disso, na verdade. Os triângulos amorosos giram o tempo todo, fazem interseções com outras histórias, como as dos filhos que inocentemente caem no seio das desestruturações que o amor dos pais pode causar. Ninguém está isento do amor. Ele tem esse inconveniente da culpabilidade do desejo e do involuntário. O egoísmo pode ser uma forma provisória de viver um amor, mas o amor também depende do desejo do outro, aí tudo se complica…

Fundir-se ao ser amado é uma promessa. E a série é cheia de verbos que indicam um compromisso pessoal entre as personagens. O amor vai exigir essa promessa de se enxergar dentro do outro, de muitas vezes abdicar uma parte de si, uma imagem única, para se tornar o espectro do ser amado. Ter uma pessoa dentro de nós pode ser angustiante, mesmo aquela que amamos.

Precisamos deixar as pessoas irem. As memórias ruins também podem ser esquecidas. Muitas vezes é preciso abandonar a casa, sair do lago lamacento, extrapolar os limites das portas e não mais procurar fatídicas chaves. É preciso sair do espiral de culpa e demolir o passado.

É preciso dialogar com os mortos com os quais convivemos sem medo e sem culpa. Abandonar um rosto, uma história de amor antiga e vislumbrar a possibilidade de novos encontros, podem ser formas de não perpetuar a nossa maldição existencial. Não podemos manipular até o fim as pessoas próximas, criar bonecas de pano e espalhá-las pela casa. Não se pode interferir no desejo do outro, por isso partir, muitas vezes, é a fina forma de amar.

Ficar preso ao passado e não reconhecer o fluxo do tempo é a maldição que provoca os formigamentos nos corpos, reverberando na necessidade urgente dos espectadores repesarem sua postura sobre viver seguindo em frente, sem esvair-se nas armadilhas que as memórias tramam.

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Nem sempre é fácil administrar os emaranhados de lembranças, vivências e escombros deixados no banco de trás da vida. Alguma chave dentro de nós precisa ser encontrada para acionar o presente enquanto experiência contínua, mantendo os laços que ligam o que já foi com o que virá com leveza.

Haverá alguma história eterna de amor?

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