6 Poemas de Ariane Viana

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Ariane Viana nasceu em 1984, em Belo Horizonte. Servidora pública, graduou-se em filosofia e em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Selecionada pelo Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura (Casa das Rosas) para o Curso Livre de Preparação de Escritores (2021) e para o Poesia Expandida (2022), é autora do Como a gente mora? (infantojuvenil, Caravana Grupo Editorial, 2022) e Pontos no mapa (poesia, Editora Urutau, 2022).


COM UMA ARMA BRANCA

Câmeras do programa Olhar Atento
flagraram o momento
em que J.G.M. teve o olho perfurado
por A.S.F. com uma caneta
durante uma briga
na rodoviária de Itabira.

Em seu escritório
no centro da cidade de Jales
um advogado matou o próprio cliente
usando uma caneta
para perfurar a jugular da vítima.

Em Cuiabá
no Residencial Paiaguás
a mulher de um cabo da PM cravou
uma caneta
no supercílio direito do militar.

Os paiaguás orgulhavam-se
de não ter piedade do inimigo.
Seu código de honra impedia
que um guerreiro recuasse em batalha.

A mulher do cabo da PM
tinha hematomas
no braço, na cabeça e no pescoço.

Os policiais foram informados
pelo vigilante do terminal rodoviário
de que os dois homens faziam uso de bebidas alcoólicas.

Preso em flagrante
o advogado disse à polícia
que agiu em legítima defesa.

Os presos podem
receber, de seus familiares
alimentos, produtos de higiene pessoal, roupas
e cigarros. Podem receber também, quinzenalmente
itens de complementação das necessidades básicas
incluindo 01 (uma) caneta azul ou preta, transparente
com entrega condicionada à devolução da anterior.

*

O fabricante de canetas francês Marcel Bich introduziu
no design da esferográfica um pequeno furo na lateral
para igualar a pressão atmosférica dentro e fora do objeto
permitindo seu uso, por exemplo, em um avião.
Assim, durante a Segunda Guerra Mundial
pilotos britânicos e americanos puderam
escrever com segurança no ar.

Em 1991, as canetas ganharam também
em cumprimento a uma medida de segurança internacional
uma abertura na tampa para diminuir o risco
de que crianças se sufoquem com a peça
caso seja engolida.

*

Em fevereiro de 2021, com sua caneta
Jair Bolsonaro assinou decretos permitindo
que colecionadores, atiradores e caçadores portem
uma arma de fogo municiada, alimentada e carregada
no trajeto até o local onde realizam a atividade de tiro
permitindo, por exemplo, a coleção de armas semiautomáticas
e autorizando membros das Forças Armadas
a adquirir até cinco mil cartuchos por ano
das armas de fogo registradas
em seu nome.

*

Em 13 de dezembro de 1968
com uma caneta
o marechal Costa e Silva assinou o AI-5.

*

Este poema foi originalmente escrito
com uma arma branca.


LUXEMBURGO

Saber orientar-se numa cidade não significa muito.
No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução.

WALTER BENJAMIN

Lá no alto, o sol
fica até mais tarde
e dá pra aproveitar
a luz por mais tempo.

A que horas
o sol se põe em Lëtzebuerg/Luxembourg/Luxemburg?

Por que
um bairro de Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil
se chama Luxemburgo?

Por que
um hospital de
câncer, no limite entre o bairro nobre e a favela
se chama Luxemburgo?

O que
veio primeiro?

O bairro ou a favela?

Quem
colocou
uma trilha de abayomis pelas calçadas
e cercas de arame farpado
queria que alguém como eu
passeando com o cachorro
seguisse o caminho
e descobrisse
que lá de cima
o nome é Santa Maria
e há cavalos pastando
ao pôr do sol.


CORPOS QUE HABITAM A MESMA CAMADA DO COSMOS

Vivem
ou não vivem
no mesmo mundo os hiaitsiihi
por não ter números a língua pirahã?

Corpos que habitam outra porção
da mesma Terra, hoje chamada
Brasil, nomeada em língua estrangeira
por desígnios
de um povo distante, prescindem
da matemática, alfabeto com o qual
disse Galileu
Deus teria escrito todo o universo
mas, como eu (e Galileu), os hiaitsiihi
não se interessam pela ideia do Criador.


QUATRO OU CINCO MULHERES

as mães são filhas das filhas
e as filhas são mães das mães.

ADÍLIA LOPES

Desencontraram-se em Caxambu
duas Marias e duas Adílias.

A Adília herdeira do Bragança
(não o sobrenome, o hotel
inaugurado pelo pai em 1926
nos áureos tempos
daquele balneário hidromineral
antes frequentado
por descendentes da Casa Real Portuguesa
hoje em franca decadência)
veio a saber da existência da segunda
por meio
da que aqui fala (nem Maria, nem Adília)
que lá pousou de passagem
por um lance de sorte, na década de 20
do século XXI
quando os cassinos locais já estavam há muito desativados.

Soube ela, por esta que vos conta
que a de além-mar é também Maria
José/Adília/autora
dos poemas reunidos na antologia Aqui estão as minhas contas.

Aqui estão as minhas contas
repetiu sorrindo
referindo-se àquele hotel
onde se reuniam
suas contas
admiravelmente em dia com o patrimônio histórico e o legado familiar
em atraso com a Secretaria de Fazenda e os bancos.

Faltou falar
da outra Maria José, que havia passado
em outra estância hidromineral de Minas
a noite de núpcias
quando, pela primeira vez
no ano de 1954
ao ver um homem nu, excitado
teria se escondido num guarda-roupas como aqueles
do Hotel Bragança
de jacarandá e espelho de cristal bisotado

Essa anedota
esta narradora não contou
como não contou que a homônima tinha feito versos como

“Quem fode
fode
fode
quem pode”

nem acrescentaria
que a avó poderia ter escrito
por sua vez

“Quem pode
foge
fode
quem pode”

— isso, só se a avó tivesse podido
fazer poemas e falar palavrões.

***

P.S:
Talvez devesse ter contado
à vó
que uma Maria José tinha escrito

“também me fechava no guarda-vestidos grande
mas um guarda-vestidos não se pode fechar por dentro
nunca ninguém viu um vestido a chorar.”


À POETISA REBELDE

Em memória de Hilda Hilst

I

ínfimo
monossilábico
vocábulorifício

II

o cu é um palavrão
o cu é sonoro, puntiforme, minimalista
o cu dos editores é grande o bastante
pra se enfiar uma bela banana

III

moça bonita também
fala palavrão


MEA CULPA

Sim, fui eu.
Talvez outra.
Decerto desta mesma linhagem
eternamente maldita
que remonta à Eva.

Como Agostinho saberia
(ou qualquer um deles)
sem ter sentido, não nos ombros
mas abaixo dos quadris, o peso
de carregar a ausência do falo?

Só tem a chave da Teodiceia
quem, tal qual Pandora
leva sempre entre as pernas
bem fechadas
a boceta
que, de tão pequena, não pôde conter
todos os males do mundo.

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