Gabrielle Dal Molin nasceu em 1987, em São Paulo. Viveu no interior deste estado até se mudar para o Rio Grande do Norte. É professora de História, mestre em Antropologia e doula. Além de poemas, escreve sobre as vivências de ser mãe, bissexual e não monogâmica. Seu primeiro livro de poesia, Seiva (Ed. Multifoco) foi publicado em 2017 e o segundo, Carnaval no Abismo, acaba de ser publicado pela Munganga Edicões, contemplado pela Lei Aldir Blanc, através da Fundação José Augusto, do Governo do RN.
Foto da poeta por Ian Rassari.
MORDIDA
morrer e não morrer
galhos da mesma semente
preciso é comer o fruto
— a pele macia do futuro
RUAS DA MEMÓRIA
silencio os estilhaços
das pequenas tragédias
semeando delícias
todos os dias
os homens criam apocalipses
enquanto procuro os parques da minha infância
OS PÉS NA TERRA
minha avó anda firme com os pés na terra
na beira do rio
no silêncio do coração da mata
no peito que bate na mangueira
que abriga o espírito de uma grande mulher
ela se lembra
que seu pai rezava os bichos picados de cobra
e que ele salvou seu cachorro
meu bisavô que não sei o nome
tem minha bênção onde quer que esteja
minha tia que é mãe e avó e mãe duas vezes
lembra que meu avô
seu pai
lhe deu os nomes das árvores
quando pergunto ela me dá
o nome da candeia e da quaresminha
diz que vai lembrar o da flor amarela que agora não
consegue
confirma com sua mãe
minha avó
que seu pai sabia das plantas porque era reiseiro
minha avó
filha de rezador e mulher de rei
em suas veias
que hoje parecem coladas por cima da pele
já passaram folhas
filhos
vida e morte
seu cachorro ofendido pela cobra
por sorte foi salvo
e em meio a tantas outras
ela também não foi ofendida
mas perdoaria se fosse
CARNAVAL NO ABISMO
arisco feitiço
nosso tempo é desse silêncio
forte
feito o mar sem grito
é menor do que eu penso
arrisco chamar de amor
um carnaval nesse abismo
LUZIR
Procedo o parto de um planeta em meu ventre
e as dores de dar-se à luz são mais intensas durante a noite
quando a lua é mãe de todos os caminhos.
O sol cumprimenta minha cabeça
sem a classe exigida e em todo meu corpo padeço
de falta de água para ferver os poros.
Eles secam assim como eu
num deserto noturno de vidas longas e causas breves.
Eu quero engolir o mundo e esqueci como é que se mastiga.
Tenho a pressa de um inseto
que não quer perder a próxima flor para o tempo.
Tenho a sede do peixe que quase sente o gosto da água.
O planeta que nasce dentro de mim se recusa a orbitar
já vem ao mundo querendo ser estrela, calda de cometa
raio de luz.
A BARBÁRIE NOS COME
nós
que temos os olhos assombrados pelo fogo
fingimos não ver que a história é escrita com sangue
nós
que esquecemos que as guerras são as mães dos senhores
e que também a praticam os desvalidos
das matas só queremos saber das lendas inocentes
(o canibalismo é esquecido)
nós
que tanto aplaudimos como se fosse filme
ficamos cegos pelas sirenes —
a barbárie nos come pelos ouvidos.
Não conhecia o trabalho de Gabrielle Dal Molin. Maravilhosos seus poemas.
Gostei.