6 Poemas de Humberto Mello

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Humberto Mello nasceu em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, em 1968, num dia de maio. O outono tropical é parte integrante de sua personalidade. Tem dois dedos da mão esquerda manchados de nicotina. É designer… crê. Dedica-se a criar livros para o outro, para o mundo (mesmo que o mundo não saiba), sob encomenda. Para ele somente um, em 1998 (ou 1997?), o Rumores da Arte. Odeia ter que escrever autobiografias. Sempre nota nesse ato incompletudes ou irrealidades.


seis poemas inomináveis


***

minha oração é pra deus nenhum
onde consagro a vida de quem vive nas ruínas
desta sociedade de violência ecumênica
onde rogo aos bárbaros que lancem
balas contra si em medida profilática para
a paz e comunhão de corpos pretos sobretudo
ao rebanho relato o livro dos dias esquecidos
do futuro como mensagem clara e eficaz
são meus irmãos e irmãs os que romperam
com a morte sistematizada e convidam a se retirar
sob porrada grossa se preciso os genocidas pois esses
tacarão fogo nos céus e não tiraremos fotografias
de anjos mortos caindo inúteis sobre
os escombros da civilização indelevelmente
antes dirão se tratar de extraterrestres
(de fato são extraterrestres os anjos) caindo
aos milhares miríades no distrito de pau
grande uma grande sacada da mídia gerando
incontáveis memes pra o riso e leveza do ato
nesse dia haverá nada mais em lugar algum
entretanto no posterior comentaremos
as notícias na hora do almoço vendo nos
celulares o mundo entremeado com videoteipes
de partidas clássicas de futebol e mastigando
postas mal servidas de esperança à brasileira
depois sucumbiremos ao sono que não
restaura a realidade de um amanhã límpido
sem o sangue das rinhas de briga-de-galo
onde todos morrem hóspedes vitalícios
de uma encruzilhada política e humana
através dos séculos convertidos no agora
ora pro nobis ninguém temos mesmo
que pegar esse hoje à unha e transformá-lo
amém.


***

O cadáver dependurado
sobre o sonho que tive
em noite sóbria era
como um argumento,
uma antecipação
de um poema.
No sonho tudo
era estático.
Fotografia de filme b
dos anos sessenta
total século passado.
Apenas eu e o cenário,
o cadáver dependurado
de ponta cabeça.
Uma cadeira fazia que caía
sem nunca cair.
Sem nunca alcançar seu objetivo.
O cadáver dependurado pendia
pra direita sobre o sonho
de um país e lá ficava
sem se importar.
Havia um descabelo.
Tinha olhos negros
e um fiapo de sangue
lhe escorria pelo sorriso
também negro,
também em suspensão.
Mesmo sem som
eu podia escutar
o riso do cadáver
dependurado
sobre um país.
Acordei.
O pesadelo não.


***

se repararmos bem nota-se
acima do lábio superior
um ardente desejo de bigodes à la Adolf,
nas concavidades oculares
o olhar frio tipo Benito
na fala tatibitati
a cruel tenacidade de Ustra brilha

esta foi minha primeira autópsia.


***

maio adentra a janela
em azul particular
ignora solene
mente
outros azuis
frutos nascem
sem pressa
maritacas gritam
em voo aglomerado
o cachorro late
os gatos aparecem
curiosos
são cinco
da madrugada
e tudo que
não somos
vive sem planos
para o amanhã.
sobra um silêncio
em algum lugar
dentro.


***

nesse dia, que mal ilumina
o poema, esgarça o som
de uma moto ao longe,
cada vez menos ouço
essas vozes roucas
a romper a barreira
do silêncio. no entanto,
não há paz, estamos
infensos, aqueles
que compreendem
estão e uma hora
nos declararemos
amplos e verticais
como o mar bravio.


***

não era nem meio dia ainda.
mordaz, o sol rompia nuvens.
entrei na velha rua
vila nova a caminho
da padaria. a barbearia aberta
com o ar parado me pareceu
uma natureza morta sem flores
ou frutas, mas cadeira e console
com produtos arrumados à sorte
ou em favor da utilidade,
como se se oferecessem ao uso.
o espelho refletia a parede
também dessa mesma natureza —
assim intuí, não tendo o ângulo
exato para comprovação.
há súbito movimento. algo escuro
avança sobre a parede direita:
a sombra triste do barbeiro se projeta
sobre meus olhos que padecem
nestes dias incertos, mais do que
o de costume, bem mais.
abaixo a cabeça como
se o pensamento pesasse.
fui comprar cigarros,
talvez uma cerveja
fosse boa ideia.
e nem era meio dia.

2 comentários em “6 Poemas de Humberto Mello”

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