A escritora Jovina Souza nasceu no estado da Bahia e mora atualmente em Salvado, onde graduou-se em letras vernáculas pela UFBA. Durante o curso, escolheu concentrar seus estudos em Literatura brasileira e Teoria literária, especializando-se em Estudos literários. Mais tarde, concluiu o mestrado em teoria e crítica da literatura e da cultura. A poeta tem participação em várias coletâneas e já publicou três livros: Agdá (2012), O caminho das estações (2018), O amor não está (2019). Seu quarto livro, intitulado O levante da fênix, será lançado no mês de abril (2021). A escritora tem participado de feiras literárias e outros eventos de literatura. Através do seu projeto Agdá/literatura se apresenta em escolas públicas, clubes de leituras e coletivos. Seu trabalho poético é estudado em escolas públicas e universidades no Brasil e nos EUA.
MEU BATISMO
Quando eu nasci Iansã me abraçou
e disse: – vem negra mulher,
pegar os verbos da tua vida.
Escolhi lutar pra vencer,
amar só pra gozar,
desobedecer pra existir.
Aceitei repartir e continuar,
ela disse ok com o polegar,
eu segui.
PREPARANDO O VOO
Não me satisfaz o silêncio.
Interessa-me a palavra funda
no acolhimento dos vivos,
dos que ficam e lutam.
Meus olhos estão atentos nos dias,
nos encontros da vida sem guia,
onde a valentia preta pode anular
a violência que nos impõe o cotidiano.
Não me apraz o medo nem a ironia
do clarão, cortando o que me liberta.
Desvio dos cortes e protejo meus olhos
da claridade que cega.
O que me seduz é abrir os caminhos
da noite escura que me acolhe
na sabedoria de Nanã.
É lá que minha alma dorme feliz
e acorda
pássaro das manhãs.
SOU MULHER PRETA
O meu caminhar é de encontros
com seres que odeiam seus traços
herdados da minha face.
Com narcisos brancos e machos
e seus espelhos, trazendo sombras
pra minha janela.
Sou uma mulher preta nessas rotas
de consciências racistas liquefeitas
a parir humanidades esdrúxulas,
disfarçadas lanças de mecenas,
ceifando crianças, mulheres e homens.
Minha vida então se faz em crônicas
de muitas lutas e de muitos sonhos.
Vivo a esperança que abraça a luta.
Neste reino de realidades cruas
fico forte é no abraço das pretas irmãs
de onde sigo para quebrar os espelhos
dos narcisos,
resgatar conforto para o negro feminino
e bálsamo para a escuridão.
MANIFESTO FEMINISTA
Há um colar de flores em torno de mim.
Há uma fera alada sobre meu ventre,
uma serpente.
E caliente e vermelha, sou astúcia
janelas múltiplas, novas trilhas
para o velho caminho de Zaratustra
e seus discípulos todos homens.
A sabedoria dos homens me dá tédio.
É restrita de assunto. O que é extenso
está na minha cabeça fecunda
em diálogos com todos os sentidos.
Por isso, aprofundo os tempos, as cores,
o mundo
que nasce e renasce na usina de mel
e vida que eu carrego entre as pernas.
O céu das alquimias geniais,
teias de bruxas secretas que tudo ver
e fazem meu padecer virar risos e voos
sobre meus incômodos.
Meus incômodos são as epístolas do falo
que só ejacula mas não sabe o que é gozar.
Para quê essa sabedoria dos machos
se de gozos múltiplos por todo o corpo,
eu me farto?
Há um colar de flores na minha cabeça.
Há uma fera alada em minha mente,
uma serpente, perspicaz, atenta.
Leio o mundo com o cérebro e os sentimentos.
Sou o sagrado, o profano, a linguagem,
a memória, o ninho da terra e das águas.
Se nada ou pouco diz de mim, fêmea e mulher
mantra para expandir a vida nos mundos,
não me serve a sapiência dos homens.
Tem pouco assunto.
MEU CORPO
Guardo signos ocultos sob
a melanina da minha pele.
Meu corpo parece apenas
de carne e osso, mas é sagrado.
Ele registra os pactos divinos
com meu Orixá de cabeça.
É um santuário de poderes,
segredos no modo como dança,
no amarrar dos panos no cabelo,
e nas contas do kelê uma epopeia
encantada
que veio sobre o atlântico e se faz
a força do ebó nas encruzilhadas,
nos matos verdes e nas cachoeiras.
Meu ara é muito mais que a pura beleza,
exala cânticos e movimentos ancestrais,
o gestual de deusas e deuses em rituais
de criação, alegrias, proteção, irmandade.
Quando ando, meu corpo é uma escultura
de ébano, bordado em cobre, ouro e prata,
uma metáfora a ser revelada.
Ele se movimenta como as águas
é uma bandeira de muitas divindades.
Não toque meu corpo sem a devida licença
senão ele corta. Ele também é do ferro.
É espada, é punhal, é faca.
ANDARILHA
Eu tenho o hábito de caminhar.
Vou me explorando sem guia.
Nas rotas quentes dos desvarios,
mais acertos, mais passarinhos.
Eu tenho gosto por andar,
ir pra outros lugares pelos rios.
Das margens para as profundezas
sem nenhuma certeza, entro em cena
até a cortina fechar.
Depois, eu tenho o prazer em desbravar.
Arribar, deixar o coração se arrebatar
ir para o sutil e o concreto.
Tenho a mania de ficar forte pra não ruir,
a sorte de não querer possuir,
pode mudar de rota e me dividir em atos.