Mariana Vieira é natural de Campina Grande, Paraíba. Trabalha e vive no Rio de Janeiro. Seu trabalho flutua entre as artes visuais, audiovisual e poesia. É professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio com doutorado em arquitetura. Autora do livro de poemas “Numa nada dada situação”, Editora 7 Letras, 2020.
Gêmeas
Aquela que considerávamos
a nossa abóbada etérea
já tinha se expandido
ao limite e talvez
por isso mesmo
e por ser noite
decidimos que sim
por ser exatamente
aquela aventura
e aquela hora
deveríamos sair
precisávamos sair
experimentar uma nova
forma de conexão
agora com a abóbada celeste
contemplar o azul
aquela concha azulada
(o conjunto das coisas já criadas
e tudo que criaríamos juntas)
tão diferente
da sopa transparente
em que ficamos
mergulhadas
não começou tudo ali
naquele salto
duplo twist carpado
que sempre soubemos
(mais intuitivamente impossível)
ser muito importante aprender
aquelas velhas acrobacias
do amor por amor
mas isso já foi muito depois
o encontro que não
podemos chamar
de encontro
por não ser encontro
a miragem do espelho
a mesma casa do tabuleiro
a ideia de sermos duas partes
do mesmo que fomos
durante aproximadamente
cinco, seis, catorze dias após
a fecundação
de sermos outra coisa
e da coisa ser
tudo que somos
e não digo de sermos
um pouco pai
e um pouco mãe
ou um pouco do pai
um pouco da mãe
e de todas que nos
antecederam
um pouco negras, índias
e mulatas
e ainda sermos
além de genética
também história
um tanto portuguesas
holandesas
e um amigo da família
nos chamar de polacas
de tão louras
e um outro de subnutridas
de tão fortes
tudo isso é meio confuso
digo, esta coisa
de ser outra coisa
e de sermos
a mesma matéria
essa força
que une células recém-divididas
em uma massa coesa
e que com um magnetismo
pouco comum
(até pouco compreensível
para alguns)
continua unindo dia
após-dia
década
após-década
duas existências
células queridas,
que bela ideia vocês tiveram
quando se aproveitaram
de uma herança
não tão bem escondida
ou daquela
falha no sistema
que faz tanta coisa fazer sentido
voltemos então
ao começo
ou à pergunta
e quando começou?
no instante preciso
em que se dividia
a primeira célula?
a famosa e necessária
multiplicação celular
a conjectura de Harvey Kliman
a epigenia
que nos deixou
cada uma
dona do par da mão
e do par do pé da outra
e como nos comprovou
aquela radiografia
(de muitos anos depois)
da metade oposta
do maxilar da outra
quando percebemos
o gosto do líquido
que refratava a imagem
ou quando
já não nos incomodavam
as piadas
nem a visão
de tanta imagem
e semelhança
nem mesmo o mesmo vestido
ou a mesma cor do vestido
o começo pode ter sido
essa membrana
que trazia o céu
para tão perto
aquela célula que se desprendeu
e preferiu ser outro coração
a curva da sua sobrancelha
o som da tua risada
que ouvi pela primeira vez
embaixo d’água
o começo, o silêncio, o universo
e todas as galáxias
que em parte vibram
em nós
trabalhando lindamente
para rechear de significados
esse delicioso
pastel
da dupla existência
O ártico real
o ártico real
as misteriosas terras estéreis
espaços ilimitados que coroam o mundo
a frágil estrutura dos kayaks
o omiak coberto com pele de foca
eu coberta com pele de foca
você coberto com pele de foca
um campo de gelo flutuante
que avança do mar
e bloqueia cem milhas da costa
eu disse – um campo de gelo flutuante avança do mar
e bloqueia cem milhas da costa
você não diz nada?
o mar está livre de gelo e os salmões se foram
por dias não haverá comida
uma raposa branca se aproxima das nossas armadilhas
escute bem
a imensidão magoa
a neve profunda
endurecida pelo vento
é – por mais dura e difícil
um bom terreno
para se construir
mas construir o quê?
O corpo e o centro estancado da terra
qualquer corpo
prende-se à terra
por gravidade
amor
ou interesse
de amor que seja
você concorda
mas não pergunta
qual parte
do corpo
qual parte
da terra
observe um pouco
escute
do centro da terra não
vem esse silêncio
um corpo não prende
outro corpo
em seu centro
se não no silêncio
um corpo só prende
o silêncio
entre dois corpos
porque tem um peso
no centro
não o silêncio
lembra?
observe mais um pouco
escute
há mais coisas
que te prendem aqui
Sobre metais
um dia me disseste que não eras de ferro
para mim foste de titânio
de diamante
sei lá
Flores
são flores, meu senhor, são flores
tudo que te digo
são flores
o pão que carrego
o trigo de que ele é feito
o mar imenso
um dia atrás do outro
esse eterno sulcar a terra
no meu caso
a melancolia das águas atlânticas
no teu
o papel impresso
dentro do caderno vermelho
são flores
as pedras no meio do caminho
a estrada estreita à direita
as que nascem do asfalto
a náusea
todas as palavras
eu não disse apenas as tuas palavras
percebes?
são flores
eu poderia dizer
são pétalas
essas proas gastas ainda lançadas ao mar
mas não digo
podes me dizer
cada coisa é o que a constitui
flores flores
palavras palavras
algumas substâncias estão satisfeitas em serem sólidas
mas eu insisto
insistentemente na ideia
do que disse antes
as flores
e todas as imagens em movimento
se turvam de vermelho
aqui e agora
como a tua fala
Lamas cristais de sal pedras e água
vamos partir
do domingo
daquele domingo
da galeria das 40 portas
onde
na ponta de cada verso
um ruído
um cheiro de pólvora
um espinho
um espinho de ponta que fura
muita lama
cristais de sal
pedras e água
onde
na ponta de cada verso
um paraquedas reserva
caía
um
(não)
não vamos falar do eco
do fogo
das flores
nem do sangue vermelhos
disso já estamos fartos
não vamos dar a volta
no parque
não beberemos
cerveja na praça
não compraremos o pão
a casa
a luneta
não assistiremos atônitos
às notícias
ao crescimento da filha
aos lançamentos dos foguetes
ao seu braço esbarrando na xícara de café
não repetiremos que
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Norte pelo Leste
ao Nordeste pelo Norte
ao Nordeste pelo Leste
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Leste pelo Nordeste
ao Leste pelo Sul
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Sudeste pelo Leste
ao Sudeste pelo Sul
ao Sul pelo Leste
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Sul pelo Oeste
ao Sudoeste pelo Sul
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Oeste pelo Sul
ao Oeste pelo Norte
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
ao Noroeste pelo Oeste
ao Noroeste pelo Norte
ao Norte pelo Oeste
tudo em volta
é lama, cristais de sal, pedras, água
não mergulharemos
não enquadraremos
o sol
Comento, sim…
Quando recuperar o fôlego.
Eu digo,
Poemas são asas quando
Poemas são,
Quando poemas não,
Âncora atadas aos pés
Em abismo sólido.