6 Poemas de Ronaldo Cagiano

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Ronaldo Cagiano, Cataguases (MG), formou-se em Direito, viveu em Brasília e em São Paulo e está radicado em Portugal. Colabora, escrevendo resenhas e artigos em diversos jornais e revistas do Brasil e exterior. Estreou com Palavra engajada (poesia, 1989) e dentre as obras publicadas, destacam-se: Dezembro indigesto (contos – Prêmio Brasília de Produção Literária 2001), Dicionário de pequenas solidões (contos, Ed. Língua Geral, Rio, 2006), Moenda de silêncios (novela juvenil, em parceria com Whisner Fraga, Ed. Dobra, SP, 2012), O sol nas feridas (Poesia, Ed. Dobra, SP, 2013 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2013), Eles não moram mais aqui (Contos, Ed. Patuá, SP, 2015 – Prêmio Jabuti 2016/Ed. Gato Bravo, Lisboa, 2018); Observatório do caos (poesia, Ed. Patuá, SP, 2016) e O mundo sem explicação (Poesia, Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2019). Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, DF, 2001), Poetas mineiros em Brasília (Varanda Edições, DF, 2002) e Todas as gerações – O conto brasiliense contemporâneo (LGE, Editora, DF, 2006).

Os poemas publicados são do livro “Cartografia do abismo” (Ed. Laranja Original, SP, 2020)


REGISTRO

Nesse tempo de absoluta dissolução
sou contaminado e salvo pela poesia,
antídoto contra
o veneno dos dias

Já não me importam
a falta de paciência do motorista
os corações duros dos auditores da Receita
a avidez usurária dos bancos
a tempestade de ofensas
o parlamento acanalhado
o roubo nas estatais
a queda do PIB
a crise do euro
os disparos de Kim Jong-un
os disparates de Trump
a poligamia de Jacob Zuma
a saliva farisaica dos evangélicos
a transgênica autoproclamação de Guaidó
os lacaios torquemadas da Lava-jato
e outros coveiros da latinoamericanidade

Meus versos não estarão em repouso
como a indolência que caminha
passo a passo
no ritmo de todas as coisas

Vou de mãos dadas
com o verbo
e com sua pá,

                                 lavratura
adestrando
o terreno infértil


PALIMPSESTOS

Sob a pele das palavras
mil mundos me contemplam
com um desafio de esfinge:

palácios
cemitérios
a náusea das guerras
as nódoas do tempo
os compulsórios desertos
a teia da aranha
a teoria da relatividade
a muda órbita dos planetas
o homem sem qualidades
a quadratura do círculo
os contornos do abismo

O vocábulo
se espraia
sobre cada gesto
                    desejo
                    centelha
                    ameaça

e cada espinho que não vejo
                                               e piso
socorre-me do
anonimato

ajuda-me a dissecar
o que ainda não
                                  vivi

Nesse tempo
de angústias em pleno cio
de temores soletrando tragédias
de ventos semeando esbulhos
em seu roteiro por
esquizofrênicas pastagens,

o verbo me devolve ao éden


BRONZE

Na gramática do tempo
consuma-se a linguagem perfeita
das estátuas.
Everado Norões

Na praça com seu nome
passo em frente
ao busto inerte de Getúlio Vargas
e saúdo as aves veteranas
que há décadas depositam em sua cabeça
o engenho das fezes
batizando o metal sem vida.

Olho ao redor
e a vida invertebrada
de vai e vens indiferentes
não se atém
à inutilidade de todas as homenagens

Mergulho na tarde
que, melancólica e sem pressa,
invade e rumina a cidade
em sua imutável e desértica
condição
com seu tempo siderúrgico
endurecendo os pulmões

Atônito entre os labirintos
de provincianos disfarces,
retido na indecisão
de desconhecidos atalhos,
perco o fio dessa meada urbana,
carrego o pesadelo dos dias
e me enfurno na paisagem


CENA

Oblíquo,
um homem atravessa
a rua ao meio-dia
e seu corpo
é um baú de cansaços
onde labirintam mistérios

Enviesado,
não se importa
com metafísicas nem chocolates
e nenhuma tabacaria por perto
secreta o espanto
que o habita

Silêncio
ou vômito
apascentam
essa solidão ambulante


ESTAÇÃO ADVERSA

Pois não. O passado é um país estrangeiro,
mas é esse para sempre o nosso país.
Luís Filipe Castro Mendes

A viagem ao passado
nunca regressa:
na combustão da memória
sinto um cão
chafurdando o íntimo,
adulando um cardume de açoites.

Animal lambendo a ferida,
escória num continente esquivo
onde adubam-se canteiros de melancolia.

As cidades nomeiam
seus mortos
e as efígies de bronze
como tobogãs de insetos,
com seu repertório de excrementos
deixa-os mais vivos
do que nós:

resistem em meio à ausência de bússola
e à fecundação do precário
nesses tempos de ilusões no cio
e colheita de fósseis do nada.

Martelo feroz da existência
é essa música do tempo
tutelando meus dissabores
notas culminantes feito lâminas:

é o fado
ou o fardo da vizinha com besouro na garganta
sibilando salmos em desvario,
acidente
na rota de minhas insônias
quando viajo em galáxias de sangue.

Há um mundo dentro das palavras
(máquina soturna)
que tento desbravar:

esse promontório
que é sedução
                        ou abismo.


NO PÉRE LACHAISE

Enquanto visito o túmulo
de Sadegh Hedayat,
escritor persa que se suicidou em 1951,
abrindo o gás no nº 37 da Rue Championet,
meus olhos passeiam inquietos;
os sentidos, fugidia embarcação,
procuram no oceano de jazigos
e sua vegetação de ausências
um último sentido para a vida
e afundo-me no inominado
nessa coleção de oráculos do Nada
aqui, onde a morte nunca envelhece.
.
Vizinho de Proust,
o autor de “Coruja cega”
divide na tarde parisiense,
despovoada e sombria,
um silêncio tão pesado
quanto o maciço de Damavand.

Vou em busca de um tempo perdido
em meio dessa colônia inerte
onde cresce a linguagem das sombras
e penso em Atma, o cão de Schopenhauer,
e no quanto foi mais feliz
que o resto da Humanidade.

14 comentários em “6 Poemas de Ronaldo Cagiano”

  1. Caro Ronaldo Cagiano, vim atrás do seu E tudo se foi com a pressa do Rio..
    Um poema sofrido, lindo
    Continuo a procurar escrever os meus mesmo em tempos de crise Admirável Mundo Novo ou
    George Owerniana!
    Aliás visitei Portobello Road e vi a placa de sua casa…
    Do George Orwell
    Tempos de manipulação e de mídia insuflando terror e medo. Você é meu poeta favorito Frost não é nada… Você é visceral, humano e com qualidades que consegue redimir, transformar os horrores atuais em palavras generosas, boas, que nos trazem esperança. Se existe um Ronaldo Cagiano certamente a vida não é pequena! Você nos devolve o sentimento de que todos nós somos Maiores que a própria vida!
    Só para lembrar eu te conheci durante meus contos do Histórias Fantásticas e mais tarde Estranhos Visitantes que culminou com Os sobreviventes. Ali, em Os sobreviventes, toda a estranheza de um mundo onde não vemos o que acontece ou se passa ” lá fora “…
    Brilhante o primeiro poema desses 6.

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    • Olá, caro escritor Luiz Zatar, grato pelo seu olhar generoso e pelas lembranças das nossas interlocuções literárias, num tempo em que não havia internet, mas saudáveis trocas postais. A poesia tem sido essa instância em que podemos afrontar os abismos existenciais e reencontrar os nossos companheiros de ofício. Grande abraço , do outro lado do Atlântico.

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  2. Caro Ronaldo Cagiano. Você publicou uma resenha de meu livro “Os souvenirs da prostituta – A novela de Ipanema”, creio que em 2006. Gostaria de retomar contato com você. É possível passar-me seu endereço eletrônico? (não whatzap, que não tenho, mas e-mail). Grato.

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