Telma Scherer é artista e professora do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da UFSC, na área de literatura brasileira. Trabalhou no campo da literatura e da performance, realizando apresentações de poesia e oficinas, para diversas instituições, entre elas o SESC/SC, o SESC/RS, a Bienal do Mercosul e a Prefeitura de Porto Alegre. Publicou o romance “As avessas” (Ipêamarelo, 2021), além de “Lugares ogros” (Caiaponte, 2019), do híbrido “Entre o vento e o peso da página” (Medusa, 2018), de seis livros de poesia: “Não alimente a escritora” (Hecatombe, 2021), “O sono de Cronos” (Terra Redonda, 2019), “Squirt” (Terra Redonda, 2019), “Depois da água” (Nave, 2014), “Rumor da casa” (7 Letras, 2008) e “Desconjunto” (IEL, 2002). É formada em Filosofia (UFRGS) e em Artes Visuais (UDESC), com mestrado (UFRGS) e doutorado (UFSC) em Literatura, sobre a obra de Ricardo Aleixo, com período sanduíche na UPORTO, Portugal.
Poemas do livro inédito “Oponente”.
Oponente
Um homem que sabe tudo
é um homem que tem medo
e nunca será uma árvore.
Não terá galhos, nem olhos
para ver o que não sabe.
Nem poderá abrigar
o morno do sol
em si,
captá-lo na pele
das suas fotossínteses.
Entre suas folhas,
nenhum rio escapa.
Um homem
senta-se à sombra,
mas não a faz,
frondoso de si,
generoso.
Homem não dá frutos.
Nenhum rio lhe escapa,
nenhum peixe é nada.
Um homem que sabe tudo
sabe erguer a espada.
Quer o sumo de si,
para si suprassumo
a sua face afiada.
Peixe dói.
O homem
espanta borboletas
na soma do que
sempre empata.
Nem galhos,
nem olhos,
mas tronco:
a voz
desse homem
é de nojo e de mando.
E, mesmo assim,
ele, que sabe tudo,
não sonha a raiz,
nem suporta vento.
Vive escondido de si,
se assombra
e, no entanto,
nele se vê de tudo
(ele vive do que se vê)
menos o oco
do oculto.
Um homem que pode tudo
não pode esperar florir.
Suas carências urgem
e ele sobe seu preço
(jura com juros)
é um homem culto
inapto para o perfume
o homem que sabe tudo.
»»
Um homem que sabe tudo
é um homem que tem medo,
medo do que não sabe.
Nada sabe do si
que é só dela,
da mulher
e suas selvas.
O homem que sabe tudo
não germina
mesmo quando
se lhe tira a casca.
É sem seiva que ele fala.
Ela
reza em silêncio.
Peixe
canta a canção dela.
Brisa
dança o amanhecer
que se esconde
dentro do ventre.
O homem, porque tem medo
não sabe se mover,
mal sabe ser
sem que o vejam —
e não sobe a árvore
nem sabe a semente.
Tudo nele é aparente.
Quando se move,
empurra.
Não há sub-reptícios
entre os seus cílios,
apenas um vazio
dentro da boca
e além.
Ele é um edifício
de janelas sempre iguais.
Suas despensas, boletos.
Bolas e catetos.
O homem que sabe
se casa e conta,
imprime e apronta —
no fundo dos olhos
tem códigos de barras.
Paga tudo em dia,
sua vida
é regida
pelo bom senso.
Ele quita e louva.
Lambe alíquotas,
na sua religião
de sombra.
Um homem
é muito bom
quando sabe as somas
e se alegra em algoritmos.
A mulher
dança todos os ritmos.
Dentro da sua saia,
é oca.
»»
Um homem que sabe tudo
é um homem que tem medo
e nunca será uma árvore.
Não terá galhos, nem olhos
para ver o que não sabe.
Um homem
é arrogante,
arrota nas madrugadas,
tem filhos, tem bens,
não sabe dizer: “meu bem”.
Um homem é sempre filho
e mija atrás dos muros,
diz que pode, porque paga,
e morre na madrugada.
Um homem que sabe tudo
já morreu, para a mulher,
antes que o filho aprenda
a mijar também, arrotar
e escarrar
na cara das notícias.
O filho do homem que sabe
também sabe, mas morre
antes de nascer.
Surge, de manhã,
em forma de sonho
que a mulher apaga
assim que acorda
com o ruído do ronco
e levanta
para ver o sol
do seu próprio ser.
O homem
jamais desperta. Ele
abre os olhos, começa
toda sua aula completa
sobre nunca se saber.
A mulher
sabe que não sabe.
Ela já foi embora
antes que ensinasse
ao homem
como se limpa um sonho,
como se abrigar
do medo
entre os braços,
fazê-lo dormir,
tirá-lo da sala
e limpar a cozinha.
A mulher não sabe
como é que ela fez.
E sabe.
Ela não lembra
de ter fabricado
o seu próprio caldeirão.
Dentro da noite,
mexe,
com sua colher de sonho.
»»
Um homem que sabe tudo
não tem tempo para nada.
Suas carícias são breves
e ele levanta acossado
pelos compromissos.
Um homem que faz de tudo
já fez seu café,
checou os e-mails,
abriu o x-videos,
apagou o Tinder
e as páginas policiais.
Ele tem aplicativos
para convencer, humilhar,
consolar
e escolher bem as palavras.
Ganhou dez mil reais,
agora mesmo.
Ele sabe investir.
Ele vai aplicar.
Ele lança dados,
calcula prazos
e devora as horas
da mulher, ao lado.
»»
Um homem que sabe tudo
não suporta
seu próprio cansaço.
Ele sua
e depois
serve um uísque.
Pegou pesado
dentro das horas
e, agora,
ele diz
que tem direito
a direitos.
Não tem
mania de limpeza
nem pressa
para prover
ponteiros.
Diz que prefere
mulheres direitas,
depiladas
e boas
de se casar.
A mulher
do homem
que sabe tudo
também sabe
mentir. Ela finge
não fugir
do seu próprio prazer.
Ela não é a mulher
do homem
que sabe.
O homem
que sabe
não sabe
que casou com um macho
travestido em dança.
No fundo da mulher,
mora a pantera,
sentada à beira
da própria cachoeira.
Ela salta.
Às vezes, se prende
no vídeo.
Outras vezes, puxa
um filete
de sangue
com a língua.
Hoje, caiu,
mas
amanhã
salta.
»»
A mulher
do homem que sabe
cheira
e beija.
Sabe tudo o que tem no jardim.
Ela conhece as ervas.
O homem está cansado
e não vê a grama,
pisa na cobra
que quis matar,
mas ela escapa.
A cobra
conhece a superfície
e pode
manejar o chão.
Ali, se alimenta
de seus presságios.
A cobra
e a mulher
estão
de combinação.
Seus ovos
se transformam,
por vezes,
em belas tartarugas,
anus e colibris.
Do manjericão,
veio o olho da pizza
que o homem
devora
sem saber
que é veneno
de sobra.
Um homem que tem fome
sempre quer
mais um pedaço.
A Telma é maravilhosa! Uma produção incrível _ máquina desejante _ que dobra desdobra redobra o sensiente dos sentidos.
Versos potentes…
O trabalho da Telma é puro fogaréu, ilusão imaginar sair ileso.
É isso tudo aí tão belamente dito, Telma!
Que poema bonito e grito
Brisa
dança o amanhecer
que se esconde
dentro do ventre.
Telma sempre causando essa pausa pra levantar os olhos do livro pra suspirar com os olhos.
Belo e profundo poema, espelho para os homens.