6 Poemas de Wélcio de Toledo

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Wélcio de Toledo, nascido em Brasília, é professor, poeta, contista e atua em movimentos sociais e culturais da cidade. Como pesquisador se dedica à poesia marginal e identidade cultural em Brasília, no curso de doutorado em Literatura e Práticas Sociais pela UnB. Antes fez graduação em História e mestrado em Gestão e Políticas Públicas para Educação.

Fez parte da “Caravana Rolidey – Literatura na Estrada”, projeto que reuniu escritores como Erre Amaral, Manoel Herzog, Pedro Tostes, Marina Ruivo, Ademir Demarchi, entre outros, e que tem como proposta levar o debate sobre literatura contemporânea brasileira e apresentar a produção literária dos autores em diversas cidades do país.

Juntamente com Vanderlei Costa, Yonaré Barros e Cris Brites toca o Coletivo Anarcopoético, que organiza ocupações anarcopoéticas em espaços abertos de Brasília juntamente com outros amigos poetas, com música, poesia, exposições ao ar livre, performances, transgressões e o que mais surgir de arte.

Possui poemas em diversas antologias, coletâneas e revistas literárias e tem quatro livros publicados: Poemas, Visões e Outras Viagens, 2012; SUBVERSOS, 2015; Rosa como o bico do meu peito (contos), 2017 e Tudo que não cabe no poema, 2019.

Acredita no caráter essencialmente libertário da poesia.


tripalium – o trabalho do artista

forte como uma mulher
e pronto
sem desculpas para consolar
a eterna necessidade de culpa

intransitivo

o salto pontiagudo
protossexual
segura a onda
que arrasta uma bigorna

entorna o torso
na verga de três paus
a escorar os escombros do capitalismo
natimorto

o corpo que não diz
existência sem resposta
promessa
que em si só já basta para anestesiar


ferramentas
amuletos utilidades
eterna espera
pedra ferro madeira osso
a forja faz do homem
um quinhão daquilo que é seu labor
mesmo desacreditando da criação

a arte cobra seu preço em labuta
da matéria vem o pó
pigmenta a tinta
impregnando de morte o artista

deus fez o pão
que o diabo amassou
seu castigo é ruminar
a perda do paraíso

ergoni et ponosi

um mergulho profundo
em busca de aquários
escafandros e
outros dispositivos de imersão


polaroid para patti smith

a mulher de meia idade
passa pela rua distraidamente
paralelo a ela, um comboio de gente marcha solitário
feito um bloco de paralelepípedos vivos
em uniformidade distópica

caminha segura de não saber o que quer
obscuros olhos de neblina
seguem em afronta à claridade produtiva da manhã
não há direção para quem se põe à deriva
tudo segue em sua plena medida
e a caravana acelerada deixa rastros que jamais serão desvendados
pela pessoa que carrega em suas botas
sinais claros de quem não está aqui para ser decifrada

mas ela ainda conversa com brecht
ela ainda dança com lorca
ela flerta com sylvia plath
faz visitas a burroughs
é cumplice de jean genet

talvez amanhã alguém se lembre daquele maio de 68 e sua aura esmaecida de 50 anos atrás
quinze para meio-dia
de um dia espremido entre e o fim de semana e o feriado
ela vai como se carregasse os bardos antigos nos olhos
inadvertidamente lou reed lhe sopra um quase assovio
um café com torradas enquanto passa em revista ao cinza dos ternos apressados da alameda
sweet jane, oh baby, sweet jane
você sabe, aqueles eram outros tempos


a louca

eu sou a louca
a que finge se apaixonar por qualquer um do bar
jurando a si mesma que dessa vez encontrou aquele selvagem dos filmes de coppola
sei que isso passa como a coca cola que passa pelo ralo de uma rala ressaca

sento só em qualquer mesa
faço questão de desfazer a impressão de mulher culta
saio às ruas sem disposição para luta nem disputas
ensandecidas apenas minhas carótidas aquecendo o sangue que serpenteia na cabeça
tem dias que tô mesmo é afim de alguém que me pague uma bebida
ouvir histórias esdrúxulas de patéticas epopeias masculinas
pelo simples prazer de me obrigar a tomar mais um gole e esquecer

e voltar a me lembrar
de quem não sou, de como cheguei nesse lugar
e constatar entorpecida de fatal felicidade
que eu sou mesmo a louca


como se o tempo fosse aquele poema que eu nunca fiz

houve um dia
em que eu quis ser lindo e forte
como aquele poema que eu ainda não fiz

um tempo antes do pensar
um tempo
antes
[em suspenso]

como se minhas asas,
aquelas que brotavam do meu calcanhar,
me levassem a flutuar à deriva de mim mesmo
não era tão distante de hoje essa época
um cisco no olho de cronos
que o fazia andar em voltas
e nós rodopiando pelo caminho
sem jamais querer chegar

hoje me movo assustado
com gestos suspeitos
como quem procura uma saída desse redemoinho
abrindo portas de espelho

não quero mais a fortaleza
só um pouco de beleza e uma réstia de brilho no fundo do olho
como se um dia eu pudesse encontrar
os resquícios daquele poema
que eu ainda não fiz

gabinete de curiosidades

hipopótamos refestelados por sobre o tapete da sala de estar
moinho catavento sem pedra sem limo sem sal sem mar
bebês em desabalada carreira nas escadas einsensteineanas
carneirinhos sem focinho, carneiros de lã de aço
pedaço do braço de madalena ao lado de um deus que sangra
estiletes estilhaços estrias cacos vincos sulcos
pulgas carrapatos sanguessugas purgatório cadáveres insepultos
oratório oráculo ouvidos moucos surdos de joelho no chão. o grito
todas as cores do hoje desaparecidas
existência! só. existência!
sem pausa
a vulga vogal sem pausa ecos de reticências
uma pomba feito míssil enviesado sinal no céu de enxofre
alvo
um alvo no mundo de claros enigmas
entre as entranhas à deriva de luas e sóis
tudo como nada tudo fica nada igual tudo cheio de vazio tudo como no final


que se foda

que se foda
que eu veja beleza
onde talvez
ela nunca esteja.
que seja

que se foda!

que se foda
que o que há
em minha frente
seja para muitos
aquilo que os torna ausentes

que se foda!

que se foda
quem não mais acredita
e vende a peso de ouro
o sonho dos que lutaram
para provar que a busca é infinita

que se foda!

que se foda
essa pose
de “oh não me toque”
de “oh quelquechose”
e esse ar blasé
que faz de você
mais um que “se acha” no mundo
e também vai se foder

que se foda!

que se foda
que eu queira fazer um poema feliz
mesmo que a arte seja a tradução
da vida do artista que está por um triz
cansei do equilíbrio em cima da corda
quero saltar para os braços da orda

que se foda!

que se foda
que você não se mova
não saia, não viva
que a futilidade seja o seu natural
eu vivo, arrisco e corro perigo
com os meus amigos do reino animal

que se foda!

que se foda
quem nunca sente
e vive o futuro
negando o presente.
que se foda
e se exploda
em síntese, sintaxe, semântica
semên e semente.
que venha mais gente.

que se foda!

que se foda
que todos se fodam
e fodam-se todos
e todos aceitem
a unidade despudorada do gozo

que se foda!

que se foda!
em gozo e alegria
foda-se tudo
e sobretudo
os poetas
eu quero é a poesia

2 comentários em “6 Poemas de Wélcio de Toledo”

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