AÍda Toledo (Guatemala, 1952)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Já me perguntei várias vezes se sou capaz de construir um discurso que explique o que me levou a escrever durante boa parte de minha vida. Suponho que seja uma espécie de pulsão, que me permite imaginar, construir mundos diferentes, de onde analiso o tempo, o espaço onde nasci, cresci e vivi, bem como as minhas próprias circunstâncias e as formas como a minha vida foi mudando, impulsionada pelo que chamei de tendência ao fracasso. Deixei meu país por muitos anos e a partir daí continuei escrevendo. Na verdade, aumentou a oportunidade de criar a partir de experiências novas e inusitadas, pelas quais passei. A mesma intimidade foi permeada pelo novo habitat. E a poesia escrita e publicada nesses dezesseis anos dá uma prova de como era minha vida naquele período.

[…]
Tenho certeza de que meu processo criativo foi permeado por contribuições oníricas. Isso já existia na minha escrita desde que morei na Guatemala até 1994. Os sonhos eram por vezes espaços patéticos, onde procurava compreender a vida de uma mulher no seio de um forte sistema patriarcal, que nos silenciava no espaço íntimo ou doméstico e nos silenciava no espaço público. Acho que o gatilho para a minha consciência do meu mundo e de outras mulheres em condições semelhantes ou mais precárias se deu na Guatemala, com minhas experiências de convivência íntima e social, e fui elucidando-as por meio de sonhos. Lembro-me muito bem de que estava tentando escrever sobre o que sonhei, principalmente em uma das décadas mais sangrentas que vivemos no país, a dos anos oitenta. Para meus estimados companheiros da época, colegas escritores, inclusive nós, um pequeno grupo de mulheres, que escreveríamos sobre nossos mundos íntimos, parecia uma perda de tempo. Eram tempos de compromisso político e, apesar de saber disso, minha escrita estava indo na direção contrária. Senti uma grande necessidade de expressar meu descontentamento vital, de um mundo mais íntimo e pessoal que estava ficando empalado com o tempo.

Já vivendo no exterior, em dois lugares totalmente diferentes em um país como os Estados Unidos, minha escrita estava assumindo outra face. A prática da minha escrita era mais recorrente do que na Guatemala, porque fora do país, de uma forma ou de outra, havia uma certa liberdade que uma pessoa como eu nunca havia experimentado antes. Uma espécie de liberdade para agir, dizer e escrever, que ela nunca experimentou. Suponho que hoje a solidão faça parte desse registro da minha escrita. Nunca saí do tom crítico, que acompanha tanto a escrita poética, o ensaio ou a ficção. Quando alguém vive fora de seu ambiente, a vida dos sonhos se intensifica, e isso causou uma aceleração no mundo das escrituras. Não tenho noção exata, nem tenho cronogramas de redação, só sei que acontece, que vai se construindo aos poucos, depois de fortes experiências de vida e de leitura, tanto criativas quanto críticas.

[…]
O retorno ao país não reduziu a escrita, a hiper-acelerou. Sim, e o fez de forma diferente, porque me encontrei no meio do processo de voltar aos poucos a entender minha própria cultura. Para enfrentar um país que mudou, que, como eu, o havia abandonado em meados dos anos noventa. O que ainda é verdade é que me refiro à experiência dos sonhos e da consciência desperta, a que se refere María Zambrano, em termos do processo de criação poética. Suponho que seja porque a partir daí fui capaz de criar um mundo escritural que me permite analisar minha própria existência e meu relacionamento com os outros.

O bom que me aconteceu como sujeito de uma geração que começou a publicar nos anos oitenta na Guatemala, é que ainda estava vivo, saí do meu país, para ter experiências fortes, intensas, por vezes rudes. Tornei-me uma mulher mais livre do que se tivesse continuado a viver aqueles anos na Guatemala. E isso ajuda e permite que um escritor siga em frente. Esteja ciente de seus direitos e suas oportunidades. Tenho certeza de que o único espaço verdadeiramente livre em que vivi foi o da escrita. A de um ofício onde não há tantas regras a seguir, apenas a recorrente intuição onírica que me guiou por todos esses anos de produção.

AÍDA TOLEDO
Trechos de “En regiones como sueños”, Esferas del tiempo, 2020.


MAIS DO QUE UM PEQUENO ARDIL

Isto é mais do que uma gruta
Sem um homem dentro
Isto é mais do que uma cova
Dessas dos contos de terror
É mais do que um bunker
Onde colocaram
Por longo tempo a Irma
Mais do que uma tortura
Sofridas por minhas amigas
Daquelas que deixam louca
Se permanecias viva
Isto é mais do que
Um lamacento pesadelo
Quando entras no banheiro
E há um enorme cão
Que fala com violência
Que fala como bêbado
Que fala como louco
Que te persegue pela casa
E fecha as três portas
Com uma invisível chave
É mais do que uma faca
Uma faca cravada sobre a mesa
Mais do que um som
O ruído de um disparo
Ao descer do ônibus
Mais do que um medo
Um medo de estar
Neste espaço imóvel
O que é seguro
É que tudo
É parte de um pânico
Pânica que sequer recordas
Pânico / assinatura
Assinatura / sinal para concluir
Um pesadelo
Final / folha sem nomes
Folha em branco
Pesadelo da escritora
Sem memória


POÇO IV

Que jeito de ser se amar de estar ainda em meus braços
Que jeito de ser sempre o mesmo que jeito o teu de me pertencer
De seguir vivendo de estar a um passo do toque
Que jeito que jeito o teu de se mostrar em sombras
De me acariciar na profundeza do sonho os lugares mais intimamente absurdos
De aparecer nos enredados e por vezes lamacentos pesadelos
Que jeito de estar e não estar
Que estilo que dor sem esperança
Que vazio quando foge de madrugada que luz
Derramada pela janela que angústia
Que solidão que sofrimento quando amanhece
E te foste e não estás e não restou traçada sequer a sua sombra
Que jeito de fazer falta
De sumir entregar-se deslizar-se abandonar-se
Ao profundo e às vezes gelado e salgado do sonho
Para dali novamente voltar
Para que regresses para que retornes para que estejas
Entre meus braços entre minhas pernas
Em cima debaixo de lado
Inclusive a um passo do pranto
Na metade de um lado ao final de algo que parece construir-se armar-se instalar-se
Que não sabe bem onde procede onde começa onde termina para onde vai
Esta farta necessidade que jeito que tens
Que jeito


RETIRADA DA AGENDA

Anos depois
O vulcão me segue
Surge
Nos sonhos
Nos pesadelos
Eu subo ao vulcão
Quase caio
O canadense me seguro
Pelo braço
Sim
Porque há um canadense
De olhos azuis
Como o céu sobre o vulcão
Neste pesadelo
E não sei o motivo
Sempre me segura pelo braço
Para que eu não caia
No poço
No poço
Na gruta
No buraco
Que há tempo me espera
Tranquilo
Paciente


ALGUÉM SE PERDE DE SI

Alguém vai sumindo
Em suas próprias grutas
Vai indo bem para dentro
Vai desaparecendo
Esquecendo-se de quem era
O que fazia
O que tanto desejava
Vai deixando de ser
Se afasta
Se perde
Desaparece
Esquece de si mesma

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