Giovanna Pollarolo (Peru, 1952)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Ao longo de minha longa vida, publiquei três livros de poesia, Huerto de los Olivos, Entre mujeres solas e La ceremonia del adiós. E em 2013, Alfaguara Peru os reuniu no volume Entre mujeres solas – Poesia reunida. Desde então não publiquei mais nada, mas escrevi muito e destruí muito também. Há anos comecei a escrever a colecção de poemas que inicialmente intitulei De casa en casa e depois, por conveniência, ficou apenas Casas. Mas não sei bem o que fazer com esses poemas, como digo no último texto que escrevi em março, no início da quarentena.

Desde que publiquei Huerto de los Olivos, minha poesia foi considerada testemunhal, confessional, autobiográfica. Resisti a tais qualificações: não pretendia testemunhar ou confessar nada; nem escrever poemas como se fosse um diário de vida. Queria apenas explorar os sentimentos, elaborar velhos e novos medos, a passagem do tempo, as mudanças do amor, a nostalgia, a consciência do fim, a fúria e as tristezas. Achei que graças à palavra fosse possível entender, iluminar as trevas, ver por trás das sombras; descerrar véus espessos. Minha autobiografia, minhas experiências, as de outras pessoas e personagens, as notícias deste e de outros mundos foram o ponto de partida; o poema, a chegada. Era o que importava e é por isso que insisti em me convencer de que minha poesia não era confessional ou testemunhal nem tinha a intenção de ser autobiográfica (talvez se eu tivesse ouvido falar de autoficção naquela época, eu poderia ter explicado melhor. Ou não, não sei) para aqueles que insistiram em encontrar vestígios biográficos, testemunhais, confessionais. Acho que também resisti a tais qualificações porque senti que por trás delas estava escondido um certo desdém ou desprezo por uma poesia – de pouco prestígio naquela época, e particularmente se fosse escrita por uma mulher – que expressava as intimidades de um certo eu transbordante, sentimental, queixoso: algo indecente, como diz Czesław Miłosz que é a poesia.

Hoje eu não consigo mais resistir. Limito-me a dizer: isso é o que existe; um eu que era, que não sou mais ou ainda sou em parte, escrevia esses poemas confessionais ou não, testemunhais ou não, autobiográficos ou não; cada um decidirá o que procurar neles e, se encontrarem, valerá a pena tê-los escrito. Esses vinte e cinco anos serão, portanto, mais do que justificados, escrevi no prólogo de Poesia reunida. Sete anos depois, ainda penso o mesmo, é isso que existe, é isso que sai de mim.

GIOVANNA POLLAROLO
“Sobre mi quehacer poético”, Esferas del tiempo, 2020.


ÀS DUAS DA TARDE

Preparo o café. Sirvo.
Em meu quarto a xícara de café sobre a mesa de noite
Minha cama, meu travesseiro
Disponho meu prazer de cada dia
                  Um romance
                  Meu café
                  A cama
                  Um cigarro
Como se fizesse amor em um hotel
Com um estranho
A cada tarde
Como se o amasse
Busco o romance, ansiosa. Tem que me fazer esquecer, tem que me levar para outro lado, onde quero estar? Com quem?
Um homem sozinho viaja por uma estrada de Montana recolhe uma mulher e falam de suas vidas solitárias.
Em um bar de Rock Springs, um homem de 34 anos conhece uma alcoólatra de 40.
Madame Bovary se enfeita para encontrar-se com Rodolphe.
Charles chora, não diz, não sabe.
Ana ama Vronsky, a culpa lhe matará depois do impossível gozo.
Minha mão tropeça com a xícara
O café quente derramado sobre a almofada
                Minhas pernas, a cama
                Os livros
E começo a chorar
                 Pelo homem solitário e pela mulher solitária
                 Pela alcoólatra do bar
                 Por Charles, por Ana, por mim.
Olho a xícara vazia
O café derramado sobre minhas pernas
A almofada.
A cama.
Os livros.


FAÇO DE CONTAS QUE DURMO
a cada noite
rezo para que ele chegue mais tarde
e não me toque
há anos que odeio seu cheiro, as pontas de seu bigode
seus arquejos
o rosto
a baba, o suor
fecho os olhos até que acabe
dura pouco porém demasiado
mal me dá tempo para pensar
no fio de uma faca.


DEPOIS DA NOITE

Eu agora estou bem
caminho tranquila e sem medo
finalmente vejo os homens como meus iguais
esquecida já a sua persistência
de me levar à cama, de me seduzir
esquecidas as inquietudes
do amor
eu agora me sinto livre
ficou para trás o terror do abandono
aprendi a dormir sozinha
a falar comigo pelas manhãs
não tenho que esperar que desocupem o banheiro
tampouco recolher roupa que não é minha.


ÀS VEZES OCORRE

despertas à meia-noite
acendes a luz e a luz não se acende
caminhas no escuro, adivinhando.
Ou então ficas pensando
tratando de esquecer que tens sede.
Ou frio
tanto, tanto frio
sabes que necessitas uma coberta porém não te levantas
preferes não levantar
esperas que venha o sonho. Esperas, esperas.
O senho demora, porém acaba chegando.
E no dia seguinte
sem sabe o motivo
apertas o interruptor
e o foco se acende
lembras o frio e vês uma coberta, estava à mão
bem ali, a um passo.
Talvez te indagues
o que terá me ocorrido?
ou que não indagues nada porque já é dia;
dizes: a noite já se foi e não quero pensar
talvez tenha sido um sonho.
E o deixas para trás, como todos os sonhos.


EM RUÍNAS

Alguns vidros das janelas estão quebrados.
A facha se converteu em um mural onde noite após noite os namorados escrevem seus nomes.
Declaram amor eterno
anotam dia, ano e hora de suas juras
cientes ou não
de que o tempo passa.
Também os vagabundos se apropriaram das paredes e até da calçada.
Fazem desenhos bizarros que envelhecem no dia seguinte
escrevem lemas e frases de protesto contra o mundo
declaram campeão o teu time de futebol favorito. Viva o time de meus amores, escrevem e deixam garrafas de plástico vazias, latas de cerveja
restos de pizzas gorduroras, maços de cigarros amassados com força
com raiva
guardanapos sujos, até mesmo papéis higiênicos e preservativos usados.
Ali, no peque jardim onde antes havia um salgueiro, uma raiz-de-guiné e um belo buganvilie vermelho crescem apenas as ervas que antes o velho jardineiro arrancava com fúria.
O pequeno jardim se converteu em um ponto de encontro.
Um dia um vizinho, logo outro e outro, como se estivessem de acordo, começaram a deixar ali seus sacos de lixo. Agora a viatura policial para somente ali, naquela esquina;
A pé em furgões bagunçados, quando cai a noite, surgem como fantasmas grupos silenciosos de homens e mulheres que separam plásticos, vidros, papéis e restos de comida. Os cães vagam, voltam a rasgar os sacos, arrancam frutas podres, restos de carne, pelancas, ossos. Os catadores que Ribeyro chamou de urubus sem plumas estão contentes, já não têm que subir e descer, descer e subir, de casa em casa.

O óxido avança como um câncer pelas grades, basta a pressão de uma mão para parti-las, como a tua mão quando rompeu a placa da porta.
Teu pé quando pisaste para abri-la.
O tempo.

Apenas o letreiro sobre o teto reluz impecável como recém colocado. Diz, com uma letra clara, em preto sobre branco:

Vende-se esta casa

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