Blanca Varela (Peru, 1926-2009)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Não se elege a poesia, é um destino. Vimos ao mundo com essa formação ou deformação: a necessidade da poesia… Comecei a escrever desde muito pequena. Provenho de uma família em que todos, bem ou mal, sempre escreveram. Porém comecei a fazer algo que realmente se podia chamar poesia ao redor dos dezesseis anos. Quando entrei na Universidade… Segundo penso, a aprendizagem da poesia não é possível. Podemos aprender a escrever poesia, que é uma coisa bem distinta. A poesia é algo natural, um dom humano, uma maneira de ver o mundo. É uma interpretação permanente das coisas da vida. Porém o ofício pode ser conduzido, melhorado… Nesse sentido, para mim foi muito importante conhecer Sebastián Salazar Bondy. Na Universidade, onde coincidimos, um dia me disse: você escreve poesia. Repliquei-lhe, evasiva, lhe mostrei algo e então me disse: você tem uma grande influência de Juana de Ibarbourou, a uruguaia. Me emprestou livros e, através dele, pude conhecer poetas de minha geração e também poetas mais velhos. E, sobretudo, pude conhecer José María Arguedas, que também me influenciou muito. Ele havia nascido e se criado na serra. Parece que perdeu a mãe ainda menino e que a madrasta, pessoa que o tratava muito mal, o entregou aos índios. José María era uma pessoa que me vinculou muito ao Peru… Claro, sou parte de uma geração literária. Sendo mulher e, de alguma maneira, a única que tem sido considerada dentro dessa geração, sinto-me muito acolhida por ela. Penso que é importante para um poeta ter consciência de geração. Com teus contemporâneos compartilhas idéias, gostos. Uns aos outros nos alimentamos… Nunca me senti um poeta profissional. A poesia é algo que tenho levado com muita discrição, como meu outro eu. Porém creio que devo aceitar que com os anos tenho feito muitas coisas, que me publicaram livros pequenos e que tenho muitos amigos.

BLANCA VARELA
“Blanca Varela: La poesía ya no es una dama burguesa”, entrevista conduzida por Victor Rodríguez Núñez. Revista Babel # 22/23. Caracas. Oct-95/Mar-96.


NO ESPELHO

Exploro a chama e não a extingo porque amo seu calor doloroso,
suas angustiadas línguas sem som,
sua pele redonda que atravesso com meus dedos
para chegar à água solitária de tão leves pálpebras.

E sinto a asa nos espelhos que me devolvem sempre,
como se colhesse as violentas cinzas que jogaram aos peixes,
como se uma ave morta pesasse entre meu sangue
e a estancasse ali,
próxima ao fogo vivo dos próprios insetos,
a seus pequenos corpos,
belos sob escuros e apodrecidos licores,
íntimos e nervosos nos gozos profundos.

Raízes de pesadas colunas de sonho entre a fronte,
gotas áridas nos frutos caídos
que transbordam azeites agudos, insondáveis.


MÁSCARA DE ALGUM DEUS

Diante de mim este rosto lunar.
Nariz de prata, pássaros na fronte.

Pássaros na fronte?

E logo há vermelho
e tudo o que a terra esquece.
Umidade com poderes de fogo
florescendo após os negros cílios.
Um rosto na parede.
Detrás do muro, além de toda vontade,
mais longe ainda que olhar e calar:
o que?

Sempre algo que romper, abolir ou temer?
E pelo outro lado? Ao revés?

Voa a mão, nasce a linha,
vibrante destino, negro destino.
Por um instante a melodia é clara,
a tarde parece eterna,
puríssima a sombra do céu.

Volto outra vez. Pergunto.
Talvez diga algo este silêncio,
é uma imensa letra que nos nomeia e contém
em seu ar profundo.
Talvez a morte detrás deste sorriso
seja amor, um gigantesco amor
em cujo centro ardemos.

Talvez o outro lado exista
e seja também o olhar
e tudo isto é o outro
e aquele este
e sejamos uma forma que muda com a luz
até ser apenas luz, apenas sombra.


SEGREDO DE FAMÍLIA

sonhei com um cão
com um cão esfolado
cantava seu corpo seu corpo vermelho assobiava
indaguei ao outro
ao que apaga a luz ao carniceiro
o que houve
por que estamos no escuro

é um sonho estás sozinha
não há outro
a luz não existe
tu és o cão tu és a flor que ladra
afia docemente tua língua
tua doce negra língua de quatro patas

a pele do homem se queima com o sonho
arde desaparece a pele humana
apenas a polpa vermelha do cão é limpa
a verdadeira luz habita sua remela
tu és o cão
tu és o esfolado cão de cada noite
sonha contigo mesma e basta


É MAIS VELOZ O TEMPO

estar em algo
alguma vez ou sempre
pedra animal homem
história de uma cor
sombra veloz em meu peito
o tempo
o tempo me persegue e me desdiz
pergunto
escrevo no ar
com a minha língua escrevo
com minhas mãos e pés escrevo
com meus olhos

o amor
uma onda inimiga me derruba
junto palavras contra palavras
não creio em nada desta história
e no entanto a cada manhã
invento o absurdo fulgor que me desperta
o limite de sombra
a consciência
o ardil original
o sol acima
a terra abaixo
ao centro o velho gesto
de uma árvore que me agride
com a inocência das árvores
a canção
que atravessa a nuvem
as coisas
caminham lindamente até a morte
a hora se desfaz sozinha
longe de tudo
fulgor e destruição
ar na greta
ou greta no ar
nem pedra nem animal nem homem

a flor aponta o crime
com silencioso rubor

ninguém no próprio tempo
se atreve a interromper o tempo


LUZ CORRENTE

a manhã é distinta
a cada manhã
às vezes são pássaros
demasiado barulhentos
                                  apressados

outras vezes é água
fina ou grossa
                 ilegível

outras
                 como pisadas
demasiado leves
                                 egoístas

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!