José Geraldo Neres (Garça, SP, 1966). Poeta, ficcionista, produtor cultural, arte-educador, roteirista, compositor, e intérprete: arteiro. Simplesmente NERES. Pesquisador independente, editor e produtor de cultura ancestral afro-ameríndia. Roteirista. Dramaturgo. Curador de encontros multilinguagens.
Poemas do livro “Um pedaço de chuva no bolso”
A TERCEIRA LÂMINA
Levo minha alma para passear. A noite é um brinquedo:
não sabemos dar corda. Chamo a infância para brincar.
Ela não encontra suas pegadas. O chão passa rápido. Os
cães perambulam: não sentem nossa conversa. Acordo.
Encontro um bilhete: volto mais tarde, não se preocupe
com seu corpo, aperte um pouco mais as engrenagens do
tempo.
PALAVRAS CAMINHAM SOBRE A ÁGUA
Traz num olho: um beija-flor, e no outro: o vazio mais
profundo que um homem pode acreditar. Nunca se
depara com pedras ou conhece o cheiro do concreto. Às
vezes, sentado. Às vezes caminha com a elegância dos
dias escuros. Chamam-no: Morte. Nunca sorri para uma
criança, jamais deseja-lhe má sorte. Sem as crianças
saberem: cria peças de orvalho, esconde pelo caminho.
Às vezes há manchas vermelhas pelo corpo. Nada pede a
ninguém.
Um pássaro se aloja no olho vazio, dois dias: penas
marrons levadas pelo vento. Ele trabalha a madeira, dá
brilho ao metal. Às vezes a rua dá-lhe teto. Às vezes o frio
e a chuva curvam-lhe o corpo. O orvalho trabalha. Nome
nenhum. Nada. Na madeira não há descanso. As pedras
e as pequenas peças caminham pelo vento.
O beija-flor entra no outro olho.
CAVALOS NA TEMPESTADE
A pressa caminha longe. O pesadelo no intervalo de um
piscar de olhos. A carne precisa de luz. Levante. Abra.
Estou ao alcance de suas mãos. Sinta o toque: os pelos
da noite caem. Anterior ao pó e ao outro corpo talhado na
madeira: a faca não cicatriza. As pálpebras pesam: o
sono não chega. Uma língua quebrada passa pelo vão da
porta: não faz ruído, o medo aperta as mãos, escasso
suor. Abra os olhos: um intervalo, tudo que preciso, não
chame: sou todos, o idioma das horas não me conhece.
Aceite: o frio não abre janelas.
Cama vazia, o lençol trocado. Olhos perdidos: caem os
dois pêndulos.
TENHO NAS MÃOS DOIS LOUCOS, um olha para
o espelho e o outro diz que não tenho face. Palavras
caem do espelho, percorrem o corpo que outrora achava
que era o meu. Aquele que não tem face coloca seu
chapéu e insiste a dizer: mergulhe. Talvez a consulta não
seja necessária. Talvez um pouco de esmola ― esse seu
corpo ― seja o remédio. Talvez seja apenas: mergulhe
sem medo. Estarei do seu lado para recolher as sobras e
montar outro corpo. Acredite: as ideias são brinquedos
sem pilhas. Mergulhe: tenho copo e um tatame. Sou
aquele que segura sua face: dizem que em minhas mãos
estão dois loucos, mas não sei quem bate à porta. Tenho
um recado: separe suas mãos e deixe sua mente. O sol
apenas ri. Quarenta graus. Ele a pino. Os miolos doem.
Agora uso um chapéu.
O OUTRO EMBAIXO DA CAMA, retiro dele peles e
peles, o chão caminha distante, espelho diante da
sombra. As mãos do tempo: pequenas moedas a querer
os olhos do barqueiro. ― Não mexa nos meus sapatos. O
terno apertado soluça: nas sete chaves um nome. ― Não
viu a textura das cordas. A mão procura a face, e a
cicatriz canta. Tenho pedra, páginas, línguas e vento. O
poema a olhar um menino, e o barro nos seus pés e
lençóis. Um rosário líquido. Todos e ninguém. A porta
recua. Há outro embaixo da cama.
NAS VEIAS DO SOL: o tempo esquecido. Com um
tambor preso nos dentes, uma pedreira chega até o mar,
arremessa sem descanso a rede apanhadora de sonhos:
vazio, vazio, vazio. Na pele as cicatrizes do ofício e o
peso da distância do calor de casa. Pintura naufragada
sem sapatos e infância. Nos cabelos as lâminas do rufar
do tambor. Escuta o seu nome: arremessa. O barco
chega à praia: nem ossos e silêncio. Outra criança
nascerá e assumirá seu lugar: Mostra-me o caminho e me
dê um nome inteiro.
MORRO TODOS OS DIAS. Na sombra do tempo a
ser nomeado tempo, no verme da primeira gota vermelha,
sou o antes do golpe, do exílio, antes da divisão, do
desafio, da punição, aquele retirado do corpo da infância:
não dou ordens, e nem permito sangue. Tenho dois
abismos nos olhos, e você para dançar. Quantas
vezes antes de nascer a primeira fogueira, aldeia,
taverna, castelos, casebres, números, mansões, cabarés,
restos de vestidos. Vejo sua morte ao lado da minha?
Nas bebidas das tragédias ― dizem ter gosto do céu ―,
nunca tocaram os meus ouvidos, mas hoje, não quero seu
corpo: à noite antes dela ter seu nascimento. Instrumento
maldito, corpo, a dizer: um passo a mais. Mergulhe o
outro passo dentro da fumaça. Deixe a música completar
a pele. Nas veias mora um ser esquecido: quero roubar o
corpo dele. Lâminas dançam como malabares, os
movimentos descompassados não o cortam. Ela ― que
tantas vezes vejo morrer ―, tenta abrir a boca: o veneno
das palavras desce pelo ouvido direito, o esquerdo não
consegue entender nada.
Sou o corpo de todos os corpos. Tenho uma serpente
para alimentar: um passo a mais, e visitaremos todas as
vozes.
UMA VELA CAMINHA DENTRO DA CHUVA.
Parafina a cair e aumentar a fila de iluminados. Antes da
escadaria, uma senhora recolhe os pagamentos: a
montanha os aguarda. Não se importem com o flautista,
ele tem nuvens nos dedos: atravessem as árvores e
àqueles que ainda não despertaram. Apressem o passo,
temos apenas uma vela e essa canção. Não inclinem o
corpo, o peso dos passos aumenta a queda d’água.
Sigam as vozes e as gargalhadas, mas não parem para
dar esmolas às crianças, guardem para a próxima
senhora, os seus dedos sabem o peso de cada um e qual
estrada receberá seus ossos. Apressem o passo, temos
apenas uma vela e essa canção.