PEÇO LICENÇA A PAI XANGÔ (canto de amor, ou gritos a dilacerar girassóis – primeiro ato de amar uma cachoeira) – Poemas de José Geraldo Neres

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José Geraldo Neres (Garça, SP, 1966). Poeta, ficcionista, produtor cultural, arte-educador, roteirista, compositor, e intérprete: arteiro. Simplesmente NERES. Pesquisador independente, editor e produtor de cultura ancestral afro-ameríndia. Roteirista. Dramaturgo. Curador de encontros multilinguagens.

Os poemas aqui, publicados, são do livro “um pedaço de chuva no bolso”.

Aqui o primeiro ato do projeto Macumbaria Poética – Arte Ancestral: https://www.facebook.com/josegeraldoneres/posts/377810665658310


PEÇO LICENÇA A PAI XANGÔ
(canto de amor, ou gritos a dilacerar girassóis – primeiro ato de amar uma cachoeira)

I

RASCUNHOS NA ÁGUA DE OLHOS VERDES

Tenho, pela manhã, a pele de café e os dois olhos de sol. Tenho esse dia, em você tenho todos os dias: as montanhas, as areias. A manhã a esticar meus ossos, e mergulhar nos seus meus olhos, mergulhar nos seios do mar, verde amar a vida, brindar com cachaça, tequila, rum, e champagne cristal, celebrar a música dentro do meu violão andaluz. Tenho você, e tenho todas as manhãs, tenho setes cores em minha pele vermelha.

A vida é linda, e ela tem os olhos verdes, vamos levantar nossos corpos e cantar a vida e o sol. Cantar a terra, e o ar, canta a vida! Cantar sua irmã morte: aqueles e aquelas que o navio deixou. Me emociono ao ver minha pele vermelha negra a mergulhar no mar da vida, me renovo a cada gota de sangue, renasço em cada lágrima de mar, e canto:

Como é linda a vida, e ela têm os olhos verdes!

Meus olhos vermelhos nas gotas de areia são o sangue ancestral, a pedir seus verdes olhos. Gritos aprisionados nos navios, nas canoas, jangadas de Aruanda. São todos aqueles que amam a terra, amam o mar. Bebo música e poesia. Nos seus braços descansar e me molhar de orvalho, na árvore primeira tem capoeira, tem samba, maracatu, maculelê eu vou jogar, o mar calunga, para quem sabe calungar, o meu tempo é poesia. Tenho você. Tenho as manhãs. No machado tenho o silêncio. Tenho a vida, e o vigor das lâminas que amam e sagram, na vida sou a justiça, rei coroado em batalha de fogo, tenho pedras na minha garganta, minhas mãos pedem fogo, e meus cabelos, cafuné.

Como é linda a vida, e ela tem os olhos verdes!

Bebo a vida e um copo de maracujá. Vou até a janela – seus olhos –, para ver o mar, sou mestiço, sou fruto pequeno que no girrasol grita e se queima. Sou o grito primitivo que encontra as lágrimas de uma criança, sou o “nec”: aquele que vem antes do vinho. Sou a borra, o adivinho. Sou água doce cristalina, cachoeira a chamar o mar. Sou o mar dentro dos olhos. O grão de ouro. As pulseiras da água. Sou o ritmo, a imagem a inaugurar a imagem, sou o caos, mas grito poesia:

Como é linda a vida, e ela tem os olhos verdes!

O mar o verde o ouro a montanha o chicote do vento a lamber minha pele negra a lamber minha a pele vermelha de urucum, minha a pele de girassol. Girassol mineiro a lamber histórias e mitos. Nativa oralidade: minha riqueza é beber as manhãs em seus meus olhos verdes.


II

Peço licença à mãe primeira, aquela que o sal me trouxe, aquela menina que brinca nas sete ondas, eu peço licença às Yabas!

Penso sempre em Ondina e em Janaína: sereia menina das águas doces, minha mãe dourada. Peço licença para cantar essa história! Eu peço licença às Yabas! Nasceu mais uma música poema. Saluba Nanã, Odaya Yemanjá, Eparrei Yansã, Eparrei Oyá, Ora Yê Yêo Mãe Oxum, Ora Yê Yêo. Nasceu. Nasceu música poema, macumbaria poética, poesia ancestral.

– Salve menino, brilha na escala chinesa, li nos ossos: sete cores, sete flores, sete dourados tons de pele. Chama aquática / Salve feminino na voz sereia. Tenho histórias nos meus seios. Tenho vida na areia, nas bicicletas voadoras.
Um chuveiro não é uma cachoeira, mas me leva ao mar.
Às vezes vejo poesia num grito pássaro. Às vezes tenho meninos: e os ensino a voar. Esse é meu trabalho, essa é a minha lida, essa é a minha sina. Peço licença. Meu trabalho é aquilo que não pode ser escrito, Sou o zumbido, o ferrão. Na floresta do norte tinha um chapéu, Ele maroto sabia dançar. Dele tenho a semente. Pra ele dei o sal sol. Pra ele fiz a aquarela, uma escala dourada, mas o homem sempre diz:

– O sal é deserto, não preciso de nada.

– Esqueço as sete matas. Esqueço o balanço das ondas. Esquece o balanço das minhas saias.

Eu fiz uma Odisséia: – Senta-se ao meu lado. Sou o navio antigo, antiga história. Antigo, antiga história. Guerra? Morte? Meu trabalho é aquilo que não pode ser escrito, Sou o zumbido, o ferrão. Sou o zumbido, o ferrão, o machado, é o machado.

– No chão tenho os pés e uma planta, eu sou cinza, e meus olhos são vermelhos, e queimam livros e mulheres.

Tenho dele a semente. Para ele dei o sol, o sal. Nos ossos eu tenho a sua aquarela. Mas ele esqueceu o gosto, esqueceu o meu rosto, esqueceu o gosto do mar, de amar. Não entende que no livro de receita é em mim que o universo canta.

Ele ficou ali só na areia, só na areia, só na areia. Faz frio em São Paulo, e no espelho há olhos vermelhos. Não tenha medo, o sal no sal eu guardo o segredo. Há vida embaixo da saia, das minhas saias, sete saias, saia profecia, palavras são vazias, palavras são vazias, e ele na areia, e no mar. Saia profecia Palavras não são vazias, um chapéu não carrega o mar.

No dia branco, no dia de todos os dias, fiz uma jangada, a primeira, era água fria, mas pra ele eu fiz o mar, pra banhar a vida, no meu seio oferenda, e ele na areia, na areia. No mar ele não sabe pular sete ondas.

Areia, pedras. Na areia, o vento se despe, há vida no mar, e ele na areia. Dei uma semente e sete ondas. Antes de mim: mar mar mar, vida e morte, uma receita, pedras e conchas, castelos para pintar.
Hoje ele me deu seu chapéu. Hoje mar mar mar, sete ondas peço licença, hoje sou o voo, sou o mar, são movimentos, movimentos, simples, ele me deu seu chapéu

– Ele cobriu meu corpo de ervas, fumou, chorou, chorou na primeira noite, de sete formas, sete peles, sete cores, cantou: aprendi a uivar, minha voz nas conchas, escute minha voz, minha voz nas conchas, nas suas coxas. O mar para, ele na areia, ele vem no movimento da areia, ele canta Pink Floyd, Led Zeppellin, e eu Janis Joplin. Ele canta para os vaqueiros, e eu para a lua. Uma pedra brilha no mar, no mar, no mar. A vida e ele na areia, eu na vida, morte, é morte e ele na pedra, os olhos vermelhos, as pedras, pedras, pedras! Ele canta Pink Floyd, Led Zeppellin, Legião Urbana, e eu no mar, no mar, no mar. Penso sempre em Ondina e em Janaína: sereia menina das águas doces, minha mãe dourada. Eu no mar, no mar, ele aprendeu a andar nas sete ondas, não sou mais menina, mas carrego o sal o sol a vida, me dá licença, vida, o mar me chama. Ele não está mais na areia.


III

CANÇÃO DO MAR – para as meninas que nos ensinam a serem homens.

Sei que tenho andado distraído! Quero me agarrar à luz, no tempo, no brilho das estrelas, e renascer no céu da boca da noite (ali no lugar líquido onde as estrelas bebem cachaça e nos ensinam que no fogo o amor é batizado, é santo, mas é preciso do tempo para sepultar as crianças: esse mundo é estranho, tempo para aprender a tomar um gole de cachaça retirada do barro). Somos imortais catedrais, e moro na rua sem ter medo de sonhar, ou de andar em um quarto escuro: – Mãe, me dá sua bênção!

Não somos tempo perdido, somos o hoje e bebemos a música do passado para reinventar os passos das ondas do mar. Vamos recolher as conchinhas: e decorar as dores de todos os náufragos, cantar no meio da tempestade. Arregaçar as mangas da minha camisa branca e gritar: “no meio do temporal ninguém é rei, meu senhor, ninguém é rei, meu senhor. Ninguém é rei, mas eu sou!”.
Somos sete elementos. Eu sou o fogo dentro da boca da noite onde uma estrela esperou meu grito de amor, e eu não tive coração de beber a cachaça dos seus seios. Fechei os olhos: a estrela entrou no meu peito, e:

– A saudade é um beijo estranho, o mar é salgada criação, não tenha medo, se jogue do penhasco: não tenha vergonha de gritar. Você aprendeu a recolher os olhos vermelhos da praia, agora é sua vez! Seja um menino! Não quero mais a dor de ensinar que o giz desenha a chuva, e desenha o verão! Seja sangue! Sua vez chegou! Tenho em minhas mãos o seu coração! E você não sabe dizer o que é o amor!

– Uma menina me ensinou quase tudo que seu sei.


IV

CÂNTICO DE UM SAMURAI.

Eu, um demiurgo a perambular por aldeias, o metal disfarça as cicatrizes, eu ferreiro. O dia recolhe histórias para compor minha tragédia: as mãos são pedaços de nuvens, e ninguém entende por que trabalho o metal sem carregar tatuagens, e os símbolos de glória e devoção à guerra. Solitário, não consigo provar o vinho, e nenhuma mulher se aproxima por mim. Sou aquele que acorda o sol e a aldeia. Desconfio, e peço que o ferro jamais encontre a carne da infância.


V

PARA SUBIR NA ÁRVORE GRANDE tem que ter o mar no sangue. O aço não corta a água – ela me ensina a caminhar –, no corpo trago: o segundo nascimento. Me chama, cachoeira, me alimenta. Cordão de ouro líquido a escutar pedidos e preces. Sou mandinga, ventre, sou capoeira: Abre a gira.


VI

Bate no peito: Sou angola. Sou a fumaça: seu medo. O pesadelo. Sou capoeira. Na ladeira, na lama, o barro, o pó: quero ver fumaça apagar o vento, meus colares, e guias. Quero o ouro, a prata. Quero a semente de Aruanda. Quero embolar meus irmãos e irmãs. Quero ver roda girá, camará, carcará. Vamos na capoeira. O mundo não tem borda ou margem, a gente é tudo junto e misturado. Vem pra gira, irmão! Nas águas ancestrais me banho, olhe para a montanha: eu tenho os olhos vermelhos!


VII

Uma vez, encontrei um capoeira, ele me perguntou se eu conhecia um mestre, e como fazer um movimento capaz de segurar o vento. Desconheço essa mandinga, mas pedi para ele encontrar um pouco de bambu e segurar uma tempestade. Ele disse que era difícil encontrar um bambu. Pedi para ele encontrar um poema, uma prosa poética. Até hoje não consegui matar a curiosidade de olhar no buraco da fechadura e nos bambus, na fé de encontrar a tempestade e os golpes de um Saci-Pererê.

Saúdo meu avô por me ensinar que a chuva é um pedaço de água que não se carrega nos bolsos, para o restante das incertezas tento unir umas palavras ao bambuzal que a tempestade canta na minha infância.

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