9 Poemas de Malu Baumgarten

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Natural de Porto Alegre, a escritora, tradutora e fotógrafa Malu Baumgarten vive Toronto, Canadá, desde 1997. Em 2023, lançou o livro bilingue de poemas A poesia da hora braba, pelo selo Invencionática, para a editora Bestiário, de Porto Alegre, RS. No Brasil o livro pode ser obtido através do site da Bestiário Editora e na América do Norte através da York University Bookstore, de Toronto. Malu participou em diversas coletâneas de prosa e poesia no Brasil, e publicou traduções de poetas anglófonas na Revista Sepé de Porto Alegre. Uma mostra de seu trabalho pode ser visualizada nos sites da web noseoutras.com e urubuquaqua.com.


AUTOBIOGRAFIA DO FUTURO

Caiu a árvore. Além do cordão de isola-
mento, sob a ponte logo ali,
sombras se esgueiram por trás de formosa
coluna de concreto – vi?

Braços abertos no chão
de gelo, ela suplica, não de todo morta, abatida
pelo vento, raízes expostas ao ar frio,
o sexo da Terra aberto e triste.

Um sabiá graúdão saltita na grama.
Um corvo alça voo do canteiro de obras,
Este esquilo tão faminto nem foge, rói
indiferente, a noz; o que sonham as tangerinas? Ninhos
de mamíferos, para cada árvore três, eu salvo coisas
e pássaros também,

pombas não são ratos; o vizinho envenenou
meu cão, agonia viva tantos anos
passados; ratos não odeio,

sou de salvar, não de matar.

Mãe, é preciso salvar o mundo?
Pai, o mundo o que é?
Na escola no sul do mundo, pensava que sabia do inverno.

As mãos doem dói o rosto desculpas para não sair, e rua!
Na rua, o corpo se move, o sangue aquece, floresce a mente. Alegria.
Somos: animal que reage a combinações químicas no cérebro.
Superior a?

Meu nobre gato no colo. Magro, olhinhos semicerrados, ele me ama.
Só os gatos possuem realeza.

Vagueio. Coleciono coisas-emoções as mais pequenas, busco
traduzir definir transcrever pintar fotografar cada qual. Quando eu me for,
levo nada nem ninguém. Deixo de mim uma sombra, um perfume,
a curva de um sorriso. Já na saída, inicio a contar
mais uma história, como Krenak ou Sherazade.

Adio. Parto, mas com preguiça.


TROPICÁLIA 2022

Meu Brasil brasileiro, os gringos te amam:
sabem do sexo de tuas mulheres,
da pobre autoestima de teus homens,
da beleza de teus rios que correm na direção
errada. País que se move, gigante e adormecido
para o abismo, ontem e hoje.

Mr. Dos Passos aplaude o teu racismo oblíquo,
e orgulhoso atribui a tolerância racial aos portugueses,
seus antepassados. Maravilha-se ele
com o sentimentalismo de teus cidadãos,
espécie de inocência bem-intencionada do povo interiorano.

A senhorita Bishop, consternada com a ignorância
do povo local, comentou: se nunca viste um
verdadeiro Picasso, finges que Portinari é bom.
A senhorita Bishop era amiga chegada de um ou outro
fascista desta terra, e com fingida modéstia
declinava o título de autoridade em assuntos
brasileiros. Seu português era pobre, dizem.

Oh, meu Brasil, como os gringos te amam:
tuas crianças prostitutas, teu Cristo de braços abertos,
teu riso e a batucada do samba! — Caution in Brazil
due to crime! —We came to hunt bad guys,
me disse um agente da DEA, bêbado.
The party went on, bundas, cachaça e cocaína.

No Brasil a gente aprende cedo a comer merda e a rir
dos condescendentes. Bem-vindo, Sr. Gringo,
a casa é sua. Nós antropófagos. Nós te come
e te vomita ainda mais guapo. Nós le pays
du carnaval, jardim de oportunidade, pele
macia para acalmar luxúrias.

… e amanhã, no turismo da favela,
traficantes de revólver, namoradas
de nove anos de idade, crianças comendo terra.
Casos para contar na volta à civilização!

Brazilianistas do mundo, aqui estamos,
braços abertos aos acadêmicos
do além-mar e suas teses indulgentes
à nossa exótica cultura!


LIÇÃO PARA MENINAS

Como um tigrinho, a menina anda na ponta dos pés,
ombros de marinheiro em terra-firma
braços longos entre o céu e a calçada.

Olhos verdes espiam através de cabelos dourados,
mas não loiros. Sob as mechas castanhas, sardas.
Pernas magras mal cobertas pela saia azul celeste,

tão curta, pulôver branco, meias até
o joelho, pele arroxeada de frio. O pátio
é vasto, ladeado pelo campo de esportes e o pavilhão

da escola, no ar a fumaça acre de cigarros invisíveis.
Ela pintou na mochila o símbolo da paz,
se acha hippie, treze anos e quer ser mais.

Cautelosa avança pelo pátio, garota tigre
na ponta dos pés, sobe desce, os ombros
dançam, o mundo se move. Na pracinha

seus olhos semicerrados, enquadram os alunos mais velhos,
ela aperta o passo, se afasta,
Não foi rápida. Antes de chegar ao portão, antes

da rua, antes do suspiro de alívio o grito
viaja do norte, ecoa, bloqueia o silêncio da rua

MACHORRA!


SIRIÚ

I
O mundo é tão vasto,
uma vez eu me perdi na curva
do Rio Siriú, sobre
a grama pintada por olhos
de sol, o escuro calmo
das sombras. Aparte, mas não longe,

o milagre das dunas, Areias
de Macacu, fenomenal, gigantesco, aterrorizante
nas tardes de tempestade, a vegetação esparsa
batida pelo vento nordestão. Pássaros
fazem ninho naquela areia, lagartos
se arrastam por lá, a poeira colore a todos.

II
A Praia do Siriú não é tão longa, cinco mil metros
de areia, mas o Siriú é um
mundo singular, turistas escassos,
poucas construções, o mar grandioso e verde.
A areia é larga, macia no cimo da encosta,
dura onde o mar a lambe morena, brilhantes
e minúsculas partículas de concha.

III
Antes do sol nascer no Siriú, as águas são
prateadas, o céu de um azul pálido. Ondas
tamborilam preguiçosas na praia, e longe,
muito longe, uma silhueta humana, um
pescador em meio à névoa. Na subida lenta
do sol a água se pinta de ouro, fogos cintilam,
ascendem, voam peixes, monstros,
nuvens que se espalham em fiapos,
bolas de algodão, cortinas de palco
para um dia quente. Na areia,
quero-queros em voo raso protegem secretos
ninhos.


PAISAGENS

Na esquina de Mount Pleasant e St. Clair há um parquinho
atrás do abrigo do ônibus. Por meses um cavalheiro acampou
lá, no verão: e sendo ele humano,
semana após semana suas coisas cresceram
em tamanho, feiura e pobreza – um carrinho
de supermercado ao lado da barraca, uma lona por
cozinha, cacarecos amarelecidos e cinzentos à volta,
óbvios sinais de humanidade. Aqui vive um homem
anunciava a indigência esparramada.

Mas era abrigo.

Vi o acampamento desfeito,
os pertences do homem espalhados na grama,
seu habitat de tesouros descartados
destruído.

Ninguém prestava atenção.

…peguei uma pomba pequena na Carlton Street
para livrar seus pés de fio dental neles enrolado
(ruas são paisagens humanas)
Senti seu pequeno peso e o corpo quente e medroso
nas minhas mãos, com penas ainda amarelo-bebê.
Deixei-a lá, apenas os pés salvos.


OPUNTIA ERINACEA URSINA

senta-se no armário junto à janela sem sol, mira o norte da rua Mount Pleasant.

Desgrenhada, grossa nos baixios, pelo rebelde que cobre um corpo de almofadas redondas e achatadas. Opuntia Erinacea Ursina, aqui chamada de Angel Cactus, às vezes também de Grizzly Bear. Pera espinhosa do deserto Mojave, criatura nativa americana nascida em leques aluviais, este cacto da planície sobrevive no
frio sem sol, enfrenta o céu de chumbo do caprichoso inverno de Toronto.

Opuntia verde clara, salpicada de mínimas esferas das quais brotam curtos bicos duros e longos espinhos peludos. Nuvem branca, aura, carícia, um alerta à mão descuidada. Ursina peluda, torcida em formas improváveis, resiste em território hostil. Ousa o que é objetivo de toda coisa viva, espalhar seu ser além do vaso, desta mesa, da sala. Envia intermitentes sinais, hormônios, acidez, silenciosos no espaço estéril. Uma planta se comunica de forma horizontal. Aqui, a ursina confinada faria bom uso de mão humana, parteira a trazer seus novos cladódios, dolorosamente elaborados, à luz da vida. Braços contorcidos e murchos,
extremidades voltadas para a noite de uma estrada imóvel, ela permanece na janela. A neve enche o ar como tempestade de areia.


QUILOMBO

Um surdo bate no meu peito
bate com meu coração
meu coração um grande surdo

BOOM BOOM
BOOM BOOM
BOOM BOOM

São horas de caminhada no cerrado
às margens do rio Paranapanã, a estiagem.
Barracos, cavalos, poeira subindo devagar
um mundo toma forma
quilombo

Eles me dão água, abrigo na sombra,
o calor é seco, o rio está baixo.
A água do balde vem do leito raso
Bebo, o frio entra no meu corpo,
não fico doente. Seus olhos são amarelados,
sobre isso eles dizem:
— só a Jacinta e o bebê têm olhos brancos.

Fazem farinha com pilões gigantes de madeira
Descem o morro, margeiam a água,
nas costas do burro, levam mercadoria para vender na
cidade branca.

Angola bate no meu peito
bate com meu coração
meu coração Congo, Senegal
AXÉ MÃE ÁFRICA!

No meu corpo dormem a angolana,
a brasileira nativa, a portuguesa. Ao olhar sou
do norte do mundo, mas no meu sangue um surdo insiste,
samba, coração, canção.

*****

Quilombo,

um bebê gorducho sentado no cobertor dentro da panela grande
dois meninos a cavalo à beira do rio. A poeira, como um sonho, ascende
das patas do cavalo que tocam a areia, esparsa vegetação verde.

Na cabana a família, uns apoiados nos outros,
uma faixa de sol corta a escuridão
uma mocinha bate mandioca com um pilão,
redes balançam ao vento.

Quilombo,
palavra quimbundo
fugitivos escondidos
longe de casa.

Mais de cem anos após a abolição
quilombolas nos cumes das montanhas, florestas,
vivem a mesma vida. Não sabem
que a escravidão acabou ou não são bobos
de acreditar que é verdade.

Meus quadris se movem com o samba
pés dançam histórias
Axé São Jorge, Ogum Guerreiro
Axé ancestrais,
paz e respeito.

durmo numa rede do lado de fora
a noite de Goiás é quente.

Do quilombo guardo uma luz exata
que brilha nas costas de crianças e cavalo
uma memória de água rasa,

fria dentro de meu corpo.


HERDAR O VENTO (Provérbios, 11:29)

Berro e chuto, arrasto a raiva, mas não sou aquele
que diz: hei de derrubar inteira a casa; ele que

teve sua carga certa de miséria, quem perturba
o sono do algoz. E medo algum há de tocar sua

coragem ou o coração que arde com luz própria
quando sem sombra de compaixão destruir a casa

onde foi gerada a dor. Dos escombros há
de emergir como um rei de fogo imaculado, e de

tudo o que de sol e clareza brilhar ele há de herdar
e todas as cores lhe darão guarida, e nunca só, ele o

valente que se insurgiu, será dono e senhor do vento.


MINHA VIDA, UMA NÃO-HISTÓRIA

A noite é quando eu sempre quando escrevo noite-dia
caminho dormida escrita sonâmbula melhor
não escrever sobre o ato a escrita ela disse
escrevo quando ando escrevo
um vale um rio a neve ah!

A Cidade de Toronto me nubla no Sunnyside
abandona-me no Lake O., cisnes no canal,
morri, eu? Vim para ver. Cheguei aqui.
Toronto minha cidade, vou te dizer: não.

Philosophia é uma palavra grega sobre o ato de pensar
To love you é questão de amar-te, death
é quando a gente morre. L’amour et la mort, singulares
preocupações humanas, c’est moi, mon cheri,

e então

a liberdade sexual é o oposto da liberdade sexual
liberdade, só é quando o corpo não exige
mais, e o amor é amor, amplo, abrangente.
Sexo é grito, convulsão, agonia,

uma perseguição que não abraça. Dragões.

A noite é quando eu sempre-nunca durmo, escrevo,
dias são apenas sonhos cansados, ideias,
rochas porosas, curiosidade é gasolina, desejo
tenho mesmo quando não, ai, desejo! Um fogo aqui

um medo ali, um arrepio e o mundo é meu.

Paranapanã, Pontaporã, Porto Alegre
o fim do mundo ao virar da esquina
me acabo também, dada, oferecida, até o final,

paixão por tudo que é vivo, e ainda,
como tudo que vive, quero vida.

3 comentários em “9 Poemas de Malu Baumgarten”

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