Marcos Aulicino. Escrevo poesia desde a juventude, tenho poemas guardados desde 1984, mas nunca corri atrás de publicação, recebi convite para editar em dois livros, o poema “Iroko” foi publicado no livro, Fio de Contas, Coletânea Poética do Òrun-Àiyé, seleção de poemas organizada pela Karina Gercke, lançada pela Lampejo Editorial, São Paulo, 2016. Recentemente, dois poemas meus, foram publicados no livro Inspirações Poéticas, uma antologia poéticas com vários autores pela Lura Editorial, 2020.
Feitiço para pegar caçador é um conto-poema escrito de a partir da generosa oferenda de José Geraldo Neres para escrever poemas a partir de seus belos desenhos coloridos, na visão dos Encantados, o que me veio como inspiração foi a recordação de um romance de de Mia Couto, A Confissão da Leoa, num estranho poema di-fusão.
Desenho/imagem do poeta por Rafael Pereira da Silva, de Londrina PR.
os felinos estão por perto
é preciso rastreá-los
colocar-se em risco
sem perder o referencial
relâmpago
disparo
presas e garras
voo rasante
de dentro, lá fora
repentina confusão
passa vento, levanta o pó
levanta as folhas
silêncio
à porta da cozinha vê-se a posição
através da tela de mosquitos
meticuloso arranjo cada objeto denuncia
o copo sobre a mesa, limão espremido
a posição do bico da chaleira em relação ao fogão
o monte de lenha arrumado no chão
no outro extremo, o fogareiro
a chama pálida indica a direção
para onde os olhos veem os ancestrais
o que resta dizer?
cada coisa estava no seu lugar
como nunca antes assim estivera
tão arrumado
tão preparado
essa luz cálida
apoia o percurso
tremeluzir claudicante
nas oscilações do óleo da lamparina
quem caminha por este corredor interno
um dia precisou de uma bengala
a sombra tropica
pois antes de mancar
empunhava sua clava com distinção
cajado com que liderava seu clã
a lâmpada vermelha
encostada na parede
substitui a lanterna
de seus dias de exploração
a outra porta entreaberta
outro acesso ao quintal
dá-se após a série de quartos
na dobra do corredor
a varanda é interna
pois à passagem dos almorávidas
deixaram suas marcas, sombras macias
ondulando como se houvesse alguma brisa
na superfície do mar tão longe dali
num lerdo e aboiado desenrolar
rio caudaloso, exalando mormaço
guardado por trás das montanhas
em quadros desenhados a pastel
dispostos na parede
e esquecidos por muitos anos
oferece para quem vigia
lá fora já respira o ar
não chove a meses
mas alguma frescura a madrugada retém
as plantas bebem desse ar
onde a secura permitiu
um fio de lágrimas
um cheiro antigo denuncia
o buraco está aberto
noite sem Lua, escuridão
as constelações faíscam faróis
aqui embaixo as sombras ficam até mais macias
mais verde, em sua profundidade topográfica
a casa convida
caminham piscares como troca de palavras
na origem da vida
alguns riscos do infinito
caem aqui e ali, couro ou cuspe
de deuses celestiais, ou fundidores de metais
dizem que neste quintal
tem um raro metal guardado
e que sua queda abriu o poço
e despertou o fogo da terra
em seu desejo de ascender
para beijar o fogo dos astros
a morte é doce
quando pousam olhos nesse poço
brotam líquidos do seu corpo
a retina do sol está ali, escondida
mas escapa pelas frestas
sem luar, sete raios refletem na escuridão
das noites profundas
encontrado o percurso na cegueira
ainda se resguardam alguns segredos
há quem não consiga mais parar de verter lágrimas
ao passar pela soleira da porta
saindo do interior da casa
alguns passos no quintal
adentra o aberto
o fundo dá pra mata
a cifrar o mistério
o caçador está em seu meio natural
seu medo vem da casa
não da floresta, nem dos animais
a fera é interna
se esconde entre os meandros dos recintos
numa arquitetura arqueológica
o que atraiu este homem tão experiente em seu ofício?
expondo-se assim nessa situação tão vulnerável
as cidades reservam olhares na surdina
será que o caçador dessa vez se deixou levar?
pelo olhar de uma jovem?
quem seduz sem se fazer percebida
numa ausência presença, pressentida?
par de olhos tão jovens
tão antigos
um olhar de fêmea que se disfarça menina
olhos de janela, peitoril
olhos que se guardam como joalheria de gavetas
armários, quartos, maquinações
presentes trancados na caixinha das costuras
heranças das tias
olhos que se camuflam no interior escuro da mata
se o caçador estivesse atento, desperto, em prontidão
em seu estado de vigília
já teria percebido o que lhe escapou
certos brilhos estranhos faiscando na massa escura
a mata o chama
quando o caçador esteve sob o feitiço do senhor das ervas
o caçador estava protegido
dono do fundo misterioso da floresta
mas agora o caçador está fora da mata
e é aí que o perigo se aloja
esquecido de si
o caçador não sabe mais quem é
e o que entra e sai de seu território
o caçador está vulnerável, totalmente visível
o caçador foi enfeitiçado
inevitável surto, ainda distingue aquela luz
no fundo do grotão, escuridão resiliente
olhos que brilham de algum fim
veem do fundo do cristalino
ela que não foi anunciada
a que escuta as almas
num vagido tímido
ela sempre esteve ali, no fundo de todos os sonidos
quando à noite deixa sua vida banal
e absorve o silêncio
em todas as tonalidades e ruídos
um mundo líquido
desde as raízes do pé de tamarindo
na calma e tranquilidade do sono de muitos
ela se instala
mas também é correnteza, sua fome é voraz
seu corpo é o rio
quase sempre plácido
mas vez por outra
se apresenta em turbilhão
seus olhos são o centro calmo
sua íris ali instalada no centro imóvel
no vórtice de toda movimentação
ela guarda seu segredo
como palavras que vivem nas sombras
nunca reveladas
embaralhadas num jogo de poesia dada
reflete de suas escamas
como uma serpente submersa
nos lençóis submersos do rio
o caçador desvenda o mistério
vindo à tona uma corrente interna
que o atrai e o enfeitiça
e lhe permite ver
mas o preço a ser pago
é o que ninguém mais vê
o caçador fala docemente aos ouvidos da dama do rio
ela saboreia cada palavra em dor e ternura
eles compactuam os apelos, os mistérios, os desejos
nas palavras cautelosamente escolhidas pelo caçador
uma estranha calma se instala, um momento esclarecedor
e um gosto de sangue retorna à boca, amargo-doce
é inevitável o despertar da sede
não seria melhor ter deixado tudo isto enterrado?
deste momento em diante, o caçador conteve suas palavras
mas já havia dito o suficiente, ao ver-se frente a frente
com seu avesso
na superfície sempre fluida do rio
espelho-fonte
estranhamente imóvel
e o caçador se deu conta
que já carregava em si a parcela da fonte
seria ele a vítima dos animais que caçava?
os felinos estão rondando por perto
o caçador agachado à beira do rio
sabe que nessa posição
se oferece em sacrifício
um tremor atravessa o portão de entrada
a sombra transita entre as sombras da escuridão
como as aves noturnas, o caçador já possui esses olhos
que vem na ausência de qualquer luz
(será que foi ela quem os emprestou?)
o tremor oscila pelo pátio da casa, já avança o quintal
uma força terrível arrasta todas as ossadas enterradas
deixa uma fenda aberta no solo
de onde brotam as ruínas da história
o que era sombra se apresenta
fogueira acesa
as chamas acolhem cada vértebra
cada fêmur, cada rótula, crânio, dentadas, artelhos
depois do fogo as livrar
mais puras, minerais
o poço as recebe
aqueles animais foram caçados?
ou seriam os seus aliados mágicos?
puro feitiço do caçador
sua verdadeira existência
o reverso do espelho
a maquinaria da bruxa
o caçador esteve no ninho
entre novelos e fios que tecem casulos
suturando os cortes, costurando as feridas
cauterizando as marcas
no casulo o caçador descobriu como fabricar
borboletas
o desenho do retrato com a oncinha é do artista Rafa PS, Rafael Pereira da Silva, de Londrina PR
Parabéns pelas obras e pelo belo poema. Sucesso Neres e Marcos Aulucino.
obrigado Luiz
Belo trabalho
obrigado Elizabeth, fico muito contente que tenha apreciado