O Canto Rouco – Poema de Ricardo Carranza

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Ricardo Carranza – São Paulo, 1953. Escritor, Editor. Publicações – Scortecci, Sesc DF, Cult, Clesi MG, Zunái, Stéphanos, Germina, Mallarmar-gens, Cronópios, O arquivo de Renato Suttana, Triplov, &Escritas.org., Gueto, Ruído Ma-nifesto, Pensador, Pixé. Livros de Poesia Publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do Autor, SP, 2011; Dramas, G&C, SP, 2012. Centelha de Inver-no, G&C, SP, 2019. Artigos e Ensaios in http://revista5.arquitetonica.com/ desde 2005.


O Canto Rouco

 

I

                                     A noite é azul
na cidade vazia; do túmulo do deus
imolado se desprende, como fogo-fátuo, um
rouco sussurro –
                precário é o mundo do homem.
Levando Napoleão, Amarílis vai
às compras; à sua passagem o ar
enlanguesce de odor convincente e
pólen flutuante (I).  Antes, à mesa do café
da manhã, ela suspirou, solitária,
esfregando o rosto com as duas mãos
como se
a maquiagem da vida lhe pesasse
como chumbo. Já ouvi as sereias
cantando, umas às outras. Creio
que para mim não vão cantar (II).
Inseparável
de seu cãozinho de estimação –
au,
au-au,
Amarílis vai ao supermercado.
                 Precário é o mundo do homem.
Maurício tem o atrito diário
com a mãe de oitenta e oito anos –
Você não sossega enquanto não me vê estendida numa cama!
Logo Maurício reina absoluto. Assiste a TV
num volume mais alto. Bate as cinzas do cigarro
no tapete. Anda nu pela casa e ninguém
mais pode com ele: ninguém.
                    Precário é o mundo do homem.
Dona Violeta sabe como é perfeitamente viável pensar
na morte enquanto a roupa centrifuga na máquina de lavar.
Todas as formações são passageiras, e aquele que se compenetra
bem dessa verdade
fica livre da dor (III).
                Precário é o mundo do homem.
O mendigo habitual,
mão em concha no ouvido esquerdo,
vai e vem na frente da farmácia
rente a uma linha reta imaginária.
Dona Violeta lhe estende generosa
fatia de bolo de fubá
num saquinho plástico reciclável.
Benedito lhe sorri, grato,
com cada um dos dentes da boca.
                  Precário é o mundo do homem.
No quarto cinza como a manhã
de chuva, ela alcança o que lhe pedem
com o olhar. Conhece bem esse olhar. Depois
de turnos de doze horas, até o raiar da íris
do paciente ela conhece tão bem quanto o seu.
Esse olhar que se orienta, ao mesmo tempo,
para duas direções opostas (IV) , vai com ela,
a passos de seda até o canto onde mora, até a
cama onde o seu corpo
treme
do repulsivo sonho mau. Esse
olhar, do homem que ora apoia o lápis contra
a folha de papel, ainda a faz esperar. E
a escandir a discórdia, o ponteiro do tempo
oscila. Ela pensa um pouco então no capricho
daquele homem, não pode deixar de julgar
aquele último gesto –
pois também ela não é feliz, enquanto anota
a hora da nossa morte – aquele olhar na borda
do insondável. Foi-se enfim, ela suspira. Agora
livre, tem de volta um nome, ressuscita
dos mortos e cuida das linhas de expressão
de um rosto cansado; tem sua água quente,
doce como carícias passageiras pelo
ventre estéril e flácido, e com dois travesseiros
nas costas, engole o comprimido com a xícara
de chá, depois de cruzar por avaras janelas
em dias e noites gravados a fogo
na suas mãos tão pequeninas.
                                     Noite
                                     de outono no hemisfério sul,
                                     ela perdeu o seu amor,
                                     da janela de sua casa,
                                     transparente, espaciosa e fria.
                                     E teve o copo com
                                     água até o limite;
                                     foi o preço pago –
                                     pela inépcia vestida de ousadia.
                                     Quando se decidiu, enfim, percebeu,
                                     pelo poema
                                     lágrima auspiciosa
                                     aquela gota.
                  Precário é o mundo do homem.
A relva leve se estendeu sobre teu leito
e te beijou com mil línguas de grama.
Porém não tu a mim (V).
Ó inconsistência perplexa (VI),
ouça do coração de vosso pó:
                   precário
                   é o mundo
                  a escandir
                  sua íntima
                  discórdia (VII) .


II

Da morte ao nascimento
agarrado à carne como
a raiz no ruir dos dias.
                    Durante o sono, uma conversa com um homem de meia idade. Não sabemos mais seu nome, ou nunca soubemos, e nos parece estranhamente familiar a inflexão da voz ora branda e aveludada, ora ríspida e reticente. Nós ouvimos sua voz como se estivesse dentro da nossa cabeça. E enquanto ouvimos pensamos e sentimos tratar-se de alguém que co-nhecemos um dia ou que se parece com esse alguém ou que reúne, não sabemos como, certas tonalidades de alguém que conhecemos um dia. Neste homem, vestido de sombra, buscamos, intrigados, reforçar certas linhas de expressão, na tentativa de apreendê-lo, quando, traído pela emoção, ele emerge para, no mesmo segundo, cair na sombra a qual tão bem se ajusta. Uma pausa incômoda intervém sem que entendamos claramente o por-quê. Da mesma forma a conversa recomeça e, a um dado momento, sob um clarão impre-visto, recuamos, perplexos, ao descobrir que se trata, apenas, de nós mesmos.
                                À hora morta de domingo,
o homem prepara uma sopa.
Ele passa dos setenta, talvez, e tem
a aparência de um ogro seco
e desdentado; da cabeça, pelada
como um ovo, tombam meia dúzia
de longos fios às sobrancelhas de arame retorcido;
a testa ostenta uma pinta escura,
rugosa como cortiça queimada;
todos os dias, quando a vê
no espelho,
é dominado por uma onda
de medo pânico que o abandona quando se afasta.
Escanchado à cadeira, arregalando
os olhos, movendo os lábios,
sibilando, ele raspa e pica cenoura em
lâminas enquanto vasculha
o birô do hall do prédio,
quem sabe uma adaga
cravejada de rubis; e nas imediações
da Júlio Mesquita, medita
sobre as carnes lascivas
da ninfa da fonte estagnada;
e na calçada do Andraus sente
um arrepio vendo as chamas devorarem
a torre, minuto a minuto, naquele
verão fatídico. Então ergue a cabeça
na sua cozinha e suspira: Salvo!
Agarra as frias moedas vegetais e
as derrama na panela ao lado. Lembra-se
de Rumpelstiltskin? Sorri do tempo
em que temia sequer pensar –
Rumpelstiltskin, e a mente
juvenil se enchia de terror.
O duende teria o poder
de lhe roubar o verde
ramo da esperança?
O vento uiva e faz trepidar a
janela do módico conjugado. Será
o vento à janela? Numa tempestade
fora de hora, embora não mais se saiba
o que é qualquer coisa fora dos eixos
hoje em dia. E como ele não saiu de casa
o fim de semana inteiro – Não pus o nariz fora de casa!
ele deixa escapar da sua abafada revolta; e sentindo
o peso dos ombros o empurrarem para
baixo, o homem se refugia no vapor
dos legumes: há muito o quê fazer, ele pensa –
pois uma cabeça
não está mais segura
sobre os ombros
quanto a de Macbeth esteve
durante o sangrento reinado.
Do trono saem relâmpagos, vozes e trovões
e diante do trono ardem sete lâmpadas de fogo (VIII).
E o vento uiva e se arrasta na cidade vazia.

E de uma janela iluminada,
                 um homem, por acaso, leva
                 à geladeira
                 a sobra de sopa do porvir.


III

                                  Flor, flor, flor.
Há um homem na plataforma do metrô:
ao entrar no vagão lhe cresce
no oco do peito a flor agonizante,
e a lágrima verte num murmúrio
ardente, ele prepara o salto
à estação futura e viverá – Por que não?
cem anos sem nada
dos Quatro Sentimentos Infinitos (IX).
Circunspecto,
ele não diz o que acontece,
não em casa,
com mulher e filhos durante o Jornal Nacional,
mas sentado no seu canto do sofá
o pensar e o sentir
ardem em combustão espontânea:
Eis-me aqui, um velho em tempo de seca (X) , e o céu…
o tempo secará também o céu –
Meu Deus!
enquanto
a vida raspa as patas à veneziana da casa?
Flor, flor, flor.
Os bolsos cheios de cacos
de calcáreo, o homem
se encontra
vago na trepidação trôpega do trem.
Como chamar este velho
em tempo de seca? Órfão d’Acrópole?
Francisco amigo dos pássaros?
Buddha, o compassivo?
Tomé, Judas, João…
Flor, flor, flor.

Morre o pó específico, não a pira
onde arde a carne, o osso e o sonho.
O nome é uma etiqueta em combustão.
A Fênix,
                  costurada de pó incandescente,
                  se refaz – ou renasce, se prefere,
                  da sucessão paralítica
                  do pó:
                  do nosso pó remanescente.
Flor e pó,
                                      da morte ao nascimento,
no eterno presente.
Rejubilai-vos. A eternidade
é presente.
E isto é tudo. É tudo. Tudo.
E não é o bastante?
À explosão de estrelas,
                 à erupção do Etna,
                 ao gatilho do vírus,
opõe, em quietude,
tua singela flor Shi
                 entre colheradas de sopa
                 numa noite erma de domingo.
Antes de dormir,
na calma do quarto, alguma coisa embala a alma daquele homem em combustão:

À noite a via láctea é um Oká de prata
À noite a via láctea é um Oká de prata
À noite
a via láctea é um Oká de prata (XI) 


IV

                                                                    O sagrado flui na forma de luz (XII)
Pode chamar de
                    Cosmos,
                    Buddha,
                    Krishna,
                    Rabindranath Tagore,
                    Santíssima Trindade,
                    A Divina Comédia,
                    Moisés abrindo o mar vermelho,
                    A Caixa de Pandora,
                   ou
                   O pecado original.
Também me ocupei, as mãos frias e úmidas, com o mistério de cada um deles;
o ouvido aguçado, avaliei a eloquência de suas vozes de baixo profundo.
Como o peixe atirado à terra agita-se convulsivamente (XIII), eu me agitei com suas enigmáti-cas alusões.
Devo lhe dizer que não me afastei de mim um nada sequer?
Do túmulo do deus imolado florescem as mais belas hortaliças.
No espelho do poema eu me interrogo:
– Dedicaste um tempo à haste do sorriso inesperado?
– À evaporação do minucioso orvalho?
– À chuvarada de ametistas?
Fica em paz no escuro do quarto.
O jasmim invisível navega o silêncio
                  enquanto ouvimos nossos passos sob luas
                  de mercúrio a dez ou doze metros de altura.

                                             No escuro, solitário, o meu corpo calmo sente-se soberano. (XIV)


V

                                    A ingênua primavera traz o germe do inverno e não
nos resta outra coisa senão a destruição desde seus
primeiros raios de sol.
O verbo emborcado na lama, despreza o ritmo
dos infinitos passos. Abandona a partita, a tocata
em fuga. No orgasmo lateja a semente do tédio quando
não há dois invernos iguais?
Ignoramos o próximo verão.
Da morte ao nascimento, nem a todos
é dado a conhecer – a graça, se prefere, o jogo das estações:
há jovens que desconheceram a introspecção da velhice,
e velhos que nada souberam do frescor da juventude.
As maçãs não amadurecem por igual.
As folhas de primavera não caem ao mesmo tempo.
Há um sol diferente para cada uma delas.
A verdura desidrata à palidez desigual da relva.
As estrelas um dia alcançarão
o alheamento de encontro à relva a éter
                     entre suspiros e explosões.
O recife fervilha de vida microscópica;
                      na areia da praia a concha guarda a ondulação sonante do vento.


VI

                                Foram poetas os homens que escreveram a Bíblia. Alguns da envergadura de Homero. Leia Sodoma e Gomorra, o lirismo concreto dos Cânticos, a fanopeia fulgu-rante do Apocalipse. Foram poetas os autores do Upanishads. Imprescindível a coesão de um povo, em esforço continuado e metódico, para a criação de um deus incorpóreo, in-tempestivo e enigmaticamente seletivo. A Poesia serviu ao fluxo do sujeito a um mundo sem sujeito, flexível o bastante para descrever o lago de folhas de outono debaixo da ár-vore solitária, o silêncio sem ouvidos para considerá-lo em sua gravidade, o perfume do jasmim sem o ar que lhe dê sustentação.
À quintessência de um povo,
e não a poesia direta,
esta simples companheira da insônia;
pelo contrário, elegeu-se a transparência
utilitária à sutura de mundos,
à porta que não abre ao nó dos dedos.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Ergue-se o véu.
Não vê a maravilha?
Ouça.
Toca com a mão o sonho adormecido.
Engaja-te.
Do estranho, irado,
                   delirante jardim de sonho,
                   o perfume sem flor
                   navega o coração ferido.
No silêncio desperta luz
                   aos olhos abertos
                   no quarto escuro,
                   desperta pétalas de luz
                   no quarto escuro.
Faz palatável, talvez, a pedra enraizada no rim.

Então, se lhe apraz, acende o fogo à proa.
Domina-te.
À deriva espera em paz pela paz.


VII

                                    Envelheço.
Arde um sonho de infância.
Imagens oxidam.
Resta um roteiro contado tantas vezes.
Então vamos ouvi-lo uma vez mais:
as crianças,
até as mais recalcitrantes,
estavam no quintal;
e eu, deslumbrado, pensava –
É como se fosse o meu aniversário;
veio até a menina de olhos de paraíso.
Apesar da ausência de imagens, o sonho tornou-se mais vivo aqui no silêncio com que partilho meu envelhecimento, menos resignado que convencido do sentido que empresto à falta de sentido. Digo silêncio tendo em mente o movimento imperturbável de tudo, centro imutável de tudo, impermanência do velho oriente que carrego comigo desde a juventude, desde ontem. Mergulhado na impermanência até a medula, no pulso do metabolismo, na cadeia elétrica de neurônios e microneurônios, enquanto me aquieto no rastro da concep-ção da palavra.
E talvez já a tenha encontrado;
ou não e a encontre, talvez, depois.
Meu longos cabelos brancos equivalem a minha dor.
E nunca saberei, no espelho claro da minha mente,
                   da fonte da geleira branca de outono. (XV)


VIII

                                  Há um tempo certo para cada propósito
e este é o tempo pretérito.
O feijão anfíbio germina
no mundo do pequeno estudante;
                 e a doença e a cura,
                 o parto e o funeral,
                 soam aos ouvidos futuros
                 como a ocasião certa
                 para resultados bons ou maus.
A experiência reversa
elucida dúvidas e acidentes
incisivos à ramificação da árvore,
ao curso do córrego piscoso,
à ignorância essencialmente humana.
O mergulho do futuro no passado
depende de um pé no eterno presente.
Ignoramos o tempo certo para nascer
e morrer.
O que sabe a semente da terra?
Nada e tudo, intui o menino vendo
como a semente cede
                 gentilmente
ao caminho do caule.
Nada e tudo do irremissível no remissível.
A queda d’água na rocha
equivale a quanto sabe o homem do futuro.
O propósito no tempo é a posteriori,
pois nada é mais certo que o ontem,
e nesse ponto nascemos póstumos.
Numa tarde de sol sopre um dente de leão;
                   vê como voa.


Notas:

(I) Ulisses, Joyce. p.471. São Paulo, CÍRCULO DO LIVRO, 1975.
(II)A canção de amor de J. Alfred Prufrock, Eliot. p.29. Lisboa, ASSÍRIO E ALVIM, 1985.
(III)As palavras do Buddha. As três características, p. 61. São Paulo, JOSÉ OLYMPIO, 1948.
(IV) Ideia de prosa, Agamben. p.32. Belo Horizonte, AUTÊNTICA, 2012.
(V) A tumba de AKR ÇAAR, Ezra Pound Poesia, p.61. São Paulo, HVCITEC, 1985.
(VI) Meditações, John Donne. p.13. São Paulo, LANDMARK, 2007.
(VII) Ideia de prosa, Agamben. p.31. Belo Horizonte, AUTÊNTICA, 2012.
(VIII) O Apocalipse. As visões proféticas. p.2146. Bíblia de Jerusalém. São Paulo, PAULUS, 2002.
(IX) As palavras do Buddha. Os quatro sentimentos infinitos, p. 63. São Paulo, JOSÉ OLYMPIO, 1948.
(X) Gerontion, Eliot. p.77. Rio de Janeiro, NOVA FRONTEIRA, 1981.
(XI) Poemas, Maiakóvski. p.139. São Paulo, PERSPECTIVA, 1997.
(XII) Las grandes elegías (1800-1801), Höelderlin. p.59. Heiliger othem durchströmt göttlich die lichte Ges-talt.
Madrid, HIPERIÓN, 1994.
(XIII) As palavras do Buddha. Meditação Reta, p. 49. São Paulo, JOSÉ OLYMPIO, 1948.
(XIV) Mania de solitudine. Qui al buio, da solo, il mio corpo è tranquillo, e si sente padrone. Cesare Pavese.
(XV) De Li Bai. Chant de palais. p.48. Héros. Limite, France, 2013.

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