Foto por Ninil
Edson Cruz (Ilhéus, BA) é poeta, músico e editor da revista literária Musa Rara (www.musarara.com.br). Publicou 12 livros, entre poesia, novela, adaptação, infantojuvenil, organização e crítica literária. Apresenta o programa de entrevistas Confraria da Palavra na Kotter TV.
[poemas extraídos dos livros “Pandemônio” (2020) e “Negrura” (2022), ambos pela Kotter Editorial]
POBRE
para Eduardo Viveiros de Castro
aquele de quem tiraram
tudo o que tinha
e o fizeram querer aquilo
que não pode ter.
aquele que fizeram crer
ser quase podre
e desejar aquilo tudo
que não pôde ser.
NIKÉ
entre o zênite e o nadir
posto-me aqui sem nada
apenas com um tênis Nike
vaidoso como um faquir.
KAFTAS
os caras vão morrer
nas ruas
igual baratas.
as caras, sentadas
no sofá da sala.
é só mirar sem dó
na cabecinha.
eliminar as mamadeiras
de piroca.
(deixar entre parênteses
os generais)
colocar um pastor
em todas as escolas.
destruir de vez
o marxismo cultural.
convidar a Porcina
pra dar um tapa na biboca.
e instituir a goiaba
como fruta nacional.
PANDEMÔNIO
as garras da noite infiltraram-se
sorrateiras
na hesitante luminosidade
dos dias.
a lição que nos ensinam
com seu manto de névoas
não será fácil assimilar.
em tempos de trevas
mitologias e religiões confundem-nos
ainda mais.
os sonhos foram expulsos
e le cheval noire de la nuit encarcerou
todas as imagens luminosas.
o que engendramos em vigília
já não inspira qualquer transcendência.
pode ser que não sejamos mais humanos
e alguma mutação ôntica já tenha
se instaurado.
talvez não seja mais possível zombar
da multidão de deuses
nem esquecê-los.
quiçá tenhamos de lhes fazer libações
para domesticar a legião de demônios
que despencou dos palácios de Satã.
o que se instaurou sobre nós
é o informe Caos à espera
de algum demiurgo.
uma símile corrompida do Paraíso Perdido
com versos que eliminaram
qualquer possibilidade
de redenção.
OROBORO
apesar de já conhecer
o fim da jornada
volto-me sobre mim mesmo
como quem não quer nada
e perfaço distraído
todos os momentos
da viagem.
HOMELESS
encontrado morto.
calado.
calejado da luta pela vida.
herói anônimo de santos
e tantos milagres
econômicos.
não teve homenagens póstumas.
nem epitáfios espirituosos.
foi enterrado sem pompas
em cova rasa.
apenas um sabiá
trinava
ao ouvido do morto.
COFFEA ARABICA
passar todas as manhãs
no coador branco
da memória
o pó eurocêntrico
da história.
escoar o líquído negro
e inalar aquele aroma
de mouros
insurgentes.
CALUNDÚ
eu não falo inglês
língua de bárbaros
sem esperança.
nem esperanto
língua sem alma
impossível ao canto.
me vingo toda noite
sonhando
em língua ancestral
banto.
TERRA BRASILIS
ao nativo do Brasil
o não indígena é branco.
mesmo que seja preto.
DIÁSPORA
o batuque do tempo
o tam-tam do tambor
não há prova ou feitiço
para o alívio da dor.
A genialidade é inconfundível. Brinca com os meus parcos conhecimentos… pura poesia.
Parabéns Edson Cruz, pela sensibilidade de grande abrangência nas várias vertentes nas veias do ser humano.
Genial Edson Cruz, um observador dos tempos.
Poesia de vida…e morte! Toca fundo!