Rascunhos para uma Possível Resenha [ou delicados desejos de comunhão]

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Por Francis Kurkievicz*

Querida amiga Mirian [S. Cavalcanti], adquiri seu belo livro RASCUNHOS – exercícios do olhar poético, editado pela Kotter Editorial, Curitiba/2021, através do selo Sendas Edições. Fiquei encantado pela sua poesia e pude perceber a sua dicção em cada poema, como já que conheço bem a sua prosa, a polifonia de vozes femininas de seu romance Femina, Feninae [Semente Editorial, RJ: 2017] ainda ressoa em minha memória, bem como o seu livro de contos Anonimatos [Semente Editorial, RJ: 2016] também. Nunca esqueci aquele belíssimo conto Água de Moringa, que já ele todo é uma construção poética genial, cheio de sensualidade, lirismo, intenções veladas, desejos em ebulição. Ali, neste pequeno conto, a sua poesia já se mostrava toda plena e arrebatadora. Este conto já deixava entrever o seu silencioso labor poético que agora estou conhecendo de fato.

Fazendo essa inusitada triangulação – poema/conto/romance – e ainda estimulado pela sua poética, pensei uma pequena ousadia: rascunhar algo que poderia vir a ser uma resenha literária. Como sabes, sou apenas um poeta anônimo, me aventuro pouco em outras searas, quase nunca abandono o silêncio da minha caverna, mas diante do teu livro senti uma compulsão (?), acho que não é a palavra certa, talvez um ânimo em falar dos livros de poemas dos meus amigos, daqueles livros que me entusiasmam e nutrem, o que quero dizer é de uma “impressão de leitura poética”, essa expressão é mais justa ao que pretendo. Então elenquei e anotei sete tópicos inspirados pelo seu livro RASCUNHOS, veja se consegui apreender a essência de suas palavras:

#0. Ponto Zero: Não tenho certeza do título para essa possível resenha, talvez algo como: “Rascunhos – impressões de leituras sobre o exercício do olhar poético”, soa um pouco como se fosse um artigo acadêmico realizado por um estudante pretencioso de Letras, não? Talvez melhor seja emprestar um de seus versos “delicados desejos de comunhão”. Quero também eleger o poema NATUREZAS como epígrafe, creio que este poema, na sua simplicidade e profundeza, revela o tipo de eu lírico que está cirandando por todo o livro, uma testemunha que presta atenção nas coisas pequenas, que vê mais do que a ele se mostra, pois consegue fazer relações sintéticas fundamentais entre as coisas:

Simples,
                 Ensolarado,
O fio dágua na palma da mão se despetala
                  Feito flor.

#1. Percebi logo nos primeiros poemas que o observador [o seu eu lírico] escapa, muitas vezes, do olho que comanda o olhar, ele ousa transfigurar-se não no objeto visto, mas naquela visão que é a totalidade lúdica, ora sendo ora deixando de ser um alguém definido; o observador não é o olho que vê o pássaro em voo e nem o pássaro voando vendo paisagens, mas a visão ampla do voar pelos céus, como se fosse o espírito do próprio voo, um planar entre a memória e o real, entre o cósmico e o quântico, entre a sensação e o sentir, entre o eixo vertical e horizontal, entre o agora e o ontem – sempre uma zona de neutra (?) entre fronteiras; nem é um ser ou um algo, mas um acontecimento experimentado quando “diluída, quebrada a redoma do tempo”, e “se desgrudando de mim de mim de mim”, e quando “meus passos se perdem na teia dos silêncios”; algo como dito no poema QUATRO GRAUS:

Flecha, o pássaro corta o gelo da manhã.
Acolho
Guardo
A lembrança do voo.

#2. Outra coisa que notei foi que o eu lírico tem uma coragem de se colocar no lugar do outro, de transcender o próprio ego, o constante ensaiar a dinâmica de ser outro, saber-se na condição alheia, com suas mazelas, aflições, dúvidas, cores, odores; um exercício constante de despersonalização em benefício da palavra mais urgente e profunda, um eu lírico ariscando mover-se em espaços sem fronteiras, sem contornos; ou apenas reconhecendo-se nas CONVERSAS DOS GRIÔS; ou como no poema UM MILHÃO DE PORTOS; ou na rebeldia dos CIRANDEIROS:

[…]
Não me peça certezas
Limites saberes
Promessas disciplinas,
Que sou errante
Transparente
De cores e mais cores a descobrir…

#3. Há também o dentro/fora, circuitos fechados, fronteiras cerradas, eventos isolados isolantes, às vezes o fora falhando na diplomacia, outras vezes o mutismo exterior espantando a dinâmica interior: “por dentro sou vento sem cor/ consciência da loucura”, um olho lúcido mirando a psicodelia da solidão e da distância;

PSICODÉLICA

Amanhece, estou sozinha.
Crescem árvores ao redor da mesa
E descubro o perfume da aveia no leite,
E me encanto com a cor da resina na borda da caneca.
                 (Por dentro sou vento sem cor,
                 Consciência da loucura.)
As migalhas de pão sentidas nas pontas dos dedos
Não podem me salvar.
Nem o azul deslumbrado por entre os trocos,
O quadriculado da toalha
Ou a música de Joan Baez
                – nem mesmo meus pedidos de socorro
                Cortados rentes cortados.

Não entendo a distância.
Há grama no chão, mas meus pés nada sentem.

#4. Mosaico de polaroides: vou elencar alguns temas interessantes que encontrei nos seus poemas, mas preciso de mais uma leitura para recuperar aqueles que eu não percebi no devido momento: o excluído, o imigrante, o amor, a ancestralidade, o saber escutar, a liberdade de ser, a crítica ao capitalismo, a alegria de viver, urgência do diálogo, a solidão, companheirismo, reminiscências da juventude, o entusiasmo da gravidez; todo livro merece mais que uma leitura, geralmente a primeira leitura é pura fruição, gozo estético, descoberta, já a segunda exige um pouco de habilidade para inferir detalhes sem violar os silêncios das entrelinhas [e sabemos que as entrelinhas guardam muito mais poesia que o elóquio do verso] como no poema EM JULHO – tudo está lá dito às claras, nas entrelinhas: o não dito é a virtude perdida de toda uma humanidade;

EM JULHO

As folhas da amendoeira
caem,
e caem,
e caem

mas a cidade, despreparada pra tanta beleza
varre
e varre
e varre

5. Tal como na sua prosa, mais notável ainda no livro de contos Anonimatos, o eu lírico tem um olhar delicado sobre as pequenas coisas, tem um sentimento de reverencia e celebração do sutil esplendendo no anônimo agora, como um manacá florindo, um chorinho entre conversas descuidadas, vacas na paciência dos transeuntes, uma música que diz “vai”, um Grieg luminoso, uma rapsódia húngara na Praça dos Heróis, um menino sonhando jangadas, cirandas e sons de pandeiros, cantos de Nhanderú, um carinho guardado, lembranças como flocos de neve, a volúpia do beijo, alecrim e quiabos, pirilampos e névoas, Euler olhos-verdes, pés olhos pipas, saravá haribol; como bem resumido no poema BREJO E TRILHA:

Amo chuva. (eu e os sapos)
Felizes, coaxam.
Feliz, desço a trilha em busca de alecrim para temperar quiabos.
Chove, chove
Música mais bonita que de pássaros, essa
De chuva, coração e sapos!
Feliz, felizes.

A comunhão é, às vezes, coisa de instantes.
Bastam sapos e brejos e trilhas e alguma urgência incrível de alecrim.
(às vezes)

6. Destaque: eu ainda distinguiria o poema OUTONO, QUINTA-FEIRA SANTA, 2016 -como o eixo-síntese do seu livro, aquele poema de onde emana a vibração que dá ritmo e gingado à ciranda poética deste livro; vejo nele toda a pluralidade da sua voz & temas ali.

7. Argumento final: neste tópico, para finalizar a possível resenha, eu gostaria de escrever algo sobre o direito à expressão e à linguagem poética, sobre a educação dos sentidos, da sensibilidade, do olhar as coisas como se fosse pela primeira vez; um chamado aos professores sobre a urgência de mediar as experiências líricas da criança para penetrar nos seus mistérios da linguagem e das próprias inquietações; eu gostaria também de falar sobre a arqueologia da memória, não como dissertação histórica, mas como um ensaio poético-afetivo, resgatando do subconsciente imagens e relacionando-as na presença de novas experiências, como você fez no poema EU CONSTRUÇÕES; Falar também sobre o desafio de dizer o que se sente sem perseverar no confessionalismo monológico egocrático, pastiche tão comum nos dias de hoje; e emular um mundo novo através da imanência da semântica, evitando-se trair o espírito da Poesia com o artifício da crônica; enfim, dizer mais que a proposição conceitual de uma resenha presume, dizer que o seu livro me estimulou a pensar a Poesia que está infusa em tudo, de reconhecer em sua poética um ser humano autêntico em labuta com um mundo perverso; não sei qual seria o propósito da Poesia ou da realização de poemas, mas uma coisa é certa e verdadeira: há poesia nos seus poemas, suficientes para mover os mundos orbitando no universo interior de cada consciência.

MOMENTO

Amanhecer
No silêncio atravessado pela chuva na folhagem;
Amanhecer
No pio aqui e ali do indeciso pássaro na névoa;
Amanhecer
No meu aquietar-se sincero,
Buscando não ser isso tudo, pra ser isso tudo

Amanhecer
E me perder de vez, papel e lápis,
Nessa mania estúpida de rascunhar versos.

Bom, a resenha que eu imagino e rascunhei aqui teria este teor, estas sendas, estes quiabos & alecrins. O que você acha, Mirian? Estou na trilha certa ou me perdi na floresta?


*Francis Kurkievicz é poeta. Publicou pela Editora Patuá seu primeiro livro de poemas B869.1 K96. Reside em Vitória/ES.

SERVIÇO:
Rascunhos – exercícios do olhar poético, Mirian S. Cavalcanti. Kotter Editorial, 1ª edição – Curitiba: 2021 – 128 p.
R$ 39,70
www.kotter.com.br

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