foto: Guilherme Muniz
Pedro Ben é músico, produtor musical & fundador do selo quarto dimensões.
Da minha natureza o processo criativo é imagético. Penso em imagens e delas me vem os sons. Sons são imagens. Resquício talvez do processo sublimatório de minha primeira maneira de expressar, na tenra infância, o desenho.
Logo os sons são para mim como cores e texturas, as quais se misturam para criar novas cores, sendo pinceladas na tela em perspectivas de figura e fundo. Dito isso procuro pensar a estrutura da música sempre em camadas, como a arquitetura de andares onde o ouvinte vai adentrado cada andar e descobrindo os quadros que ali estão nas paredes. Talvez trago as pulsões do que faria em desenho, para dentro do meu fazer musical.
Chamo este processo particular de minha frequência vibracional com o sons, pois todos já existem, os sons habitam o plano metafísico, e cada artista busca a sua maneira, a chave para materializá-los no mundo físico, isso é: a frequência dos seres. Materializamos aquilo que vibramos, não se deve enganar a arte, é preciso está aberto e honesto a sua maneira de se expressar sempre, é preciso aceitá-la, mesmo quando vez ou outra deixemos nos influenciar por estruturas já estabelecidas. Aceitar limitações, descobrir aptidões, construirá algo autêntico, que poderá até chamar de seu, pois como um espelho irá refletir o ser artístico que tem em si sua morada.
Terminado essa introdução um tanto abstrata, vamos as questões práticas. Após experiências frustadas em estúdios de gravação, decidi me aventurar no mundo das equalizações, mixagens e masterizações, termos e procedimentos técnicos para descrever sonoridades. Daí nasce o estúdio em casa, que passado a etapa de pesquisar e adquirir equipamentos, poderia então enfim por em prática as imagens que rondavam minha mente impaciente. O nome dele é quarto dimensões que transformou-se em um selo que também evoluiu para apresentações ao vivo, como uma colaboração de produtores.
Por naturalmente ter uma pressa de viver, explorar e buscar os sons infinitos, estar distante da zona de conforto, me propor fazer o oposto da prática, recear repetições, acabei por me envolver em algumas experiências musicais, seja em estúdio ou ao vivo. Não é necessário e nem possível detalhar todas em um texto, irei abordar aspectos gerais de algumas destas experiências fundamentais para minha construção, em uma linha cronológica do futuro para o passado, que moldaram-me como artista(?).
Quarto dimensões: laboratório quadrilátero
No pensar de produtor musical vejo que seu papel são basicamente dois. Um: produção musical é a arte de eliminação do desnecessário; Dois: o produtor deve estimular o músico a ter a sua “melhor” ou “pior” performance e sentir qual delas irá seguir registrada; Dentre tantas outras atribuições, diria que essas são fundamentais. No entanto, cada produtor e músico possui suas idiossincrasias, isso se desenvolve através da compreensão do que se quer expressar; Há registros que também podem nascer do caos e das discordâncias. A condução da relação entre os indivíduos, influencia de maneira proativa ou não o andamento da produção; Com a possibilidade atual de se ter estúdios caseiros, é preciso ser consciente que no processo de gravação, o acesso a tecnologia e uso dos (utilização) recursos técnicos moldam a música e seu registro – de como tudo irá soar;
Sempre me agradou sonoridades cruas e “sujas”, sem muitas edições ou tratamentos. Talvez daí minha paixão por gravações da década de 70 – no geral por serem orgânicas – e atualmente, minha tendência a estética lo-fi – tão no hype – que em tese seriam gravações de baixa qualidade. Porém tudo isso são decisões estéticas que nada tem a ver com os julgamentos “bom” ou “ruim”. Melhor sempre optar por estética quando não se tem condições “ideais” para registro ou mesmo quando as tem. Prezo pela sinceridade e organicidade do músico/banda e por minha experiência também como ouvinte, são os tipos de registros que possuem personalidade. Gravações que soam como produtos de linha de montagem, acredito não precisar detalhar tal fato no mercado fonográfico, não me atraem.
Outro fator a ser percebido inicialmente no processo de produção é como o compositor estrutura suas músicas. É comum dois processos: a música compões as letras ou as letras se encaixam na música (este segundo processo era o utilizado na Alcaçuz); é importante ter referências – e não somente musicais – porém mais interessante é desconstruir os lugares comuns e estar aberto ao inesperado. Para não me alongar tanto em tais questões, um procedimento o qual utilizo é realizar o registro minimalista das composições, reduzi-las a sua essência e retirar quaisquer equipamentos que facilitem ou mascarem sua execução; Exemplo: se comumente executa a música utilizando efeitos de guitarra, toque-a sem efeitos e diretamente crua ligada em um amplificador. Aqui irá descobrir o que é essencial a composição e o que é desnecessário para comunicar, depois disso, as camadas serão construídas.
Duben: tocador de esquisitice
Através do alter-ego duben me permiti experienciar e desafiar a mim, sem a preocupação de criar música com outras pessoas ou para tocá-las em grupo. Inclusive nunca foi intenção apresentar-se ao vivo ou torna-se banda. No momento não estava disposto a abrir mão da minha criatividade. Aqui de fato se desperta a persona produtor musical, seria meu laboratório. A partir de uma postura dadaísta, de negar tudo o que tinha feito e experienciado até ali, com suas frustrações e descobertas, criar algo fora de conceitos, do zero, operando e controlado todo o processo – composição ao registro. Já havia timidamente testado quebrar estruturas anteriormente – músicas sem refrões – mas aqui me pus como uma missão de evitar o tradicional esperado, um estado de experimentalismo pessoal. Não me senti bem sucedido em tal tarefa – testes que tiveram início com “Um breve resumo do futuro” (2017) – donde nasceu o disco “1990” (2019). O ano em que nasci e representa um retorno ao meu estado embrionário, um recomeço, era minha visão e atuação antropológica diante da experiência musical, de vê-la muito mais como uma pesquisa e descoberta, do que um formato a ser consumido/consumado. Neste tempo testei técnicas do que se chama “música modular”, não no sentido usual da tonalidade, mas no sentido de registro fonográfico. Ao invés de criar uma música inteira, criava várias trilhas/módulos esquizofrênicos e depois como um frankenstein as montava em um formato musical, onde não necessariamente precisavam ter ligações entre si, um pouco de remanescências do processo vivo com a alcaçuz, mas com outra visão – a faixa “o som das paredes” é que melhor exemplifica. O principal dessa auto-descoberta e comportamento de cobaia foi visualizar com profundidade a importância do silêncio e uso do ruído como recurso na música, como esta oposição – silêncio x barulho – comunicam tanto quanto a constância de sons definidos. Esse registro diz muito sobre todo o tumulto e vazio que existe no íntimo de cada um.
Alcaçuz: guitarrices iniciais
Alcaçuz, banda a qual iniciei minhas primeiras aventuras como compositor e descobri minhas limitações e inclinações a produção. É preciso ser dito que pessoalmente nunca tive intenções de cantar, aqui aprendi a ser um intérprete das criações musicais, e não necessariamente cantá-las, não sou cantor, o que importava aqui era comunicar. Outro fato a ser dito é que a parte instrumental sempre funcionou como uma espécie de trilha sonora para as letras. As letras em si não passavam de contos e histórias sobre relações, mal sucedidas, e a experiência com o lado tóxico do amor e seus comportamentos questionáveis, tudo era sobre o não-amor. Na alcaçuz nenhum músico seguia o outro, era uma espécie de “duelo” constante entre os instrumentos e a voz tentar surgir meio aquela desordem de referências; Algo natural já que as propostas de músicas nasciam de improvisos e jams em longos ensaios nas tardes quentes da zona sul. Após os ensaios vinha o “trabalho artesanal” de estruturar toda essa massa sonora em algo compreensível. Aqui já se mostra presente a influencia das imagens em meu fazer, pois quando lia a letra, automaticamente vinha em minha mente as cenas, como uma espécie de storyboard dos quadrinhos – outra paixão – e assim construía a trilha sonora como para quem fosse assistir tais cenas em uma tela de cinema.
A imagem, imagino eu, de guitarrista é uma marca minha nesses tempos. Porém a guitarra era para mim apenas mais um elemento, um instrumento de expressão daquela estética, que era até certo ponto fechada, pois éramos um trio tocando juntos. O foco era a composição, nenhum instrumento deveria ser protagonista, e sobre como abordar “seu” instrumento dentro do arranjo, sendo executado como um todo a favor da música, onde cada um se colocava como forma de realçar os outros instrumentos e compartilhar momentos de protagonismo. Sendo assim, nunca me senti guitarrista, e nem pretendo ser digno deste “título”; As principais lições desse tempo foi vivenciar a diferença do ao vivo e o gravado. No ao vivo sempre nos permitimos improvisar e desconstruir a música diante dos olhos do público, o vivo representava outras possibilidades não testadas, o que era estimulante para mim. O gravado é imutável, daí a necessidade de captar a energia de uma banda em um ambiente controlado. Aprecio as duas experiências, no entanto a alcaçuz como um mutante não conseguiu adaptar-se as castrações que o contexto nos impõe. Aqui neste lugar, compreendi de fato a influência do indivíduo externo: o produtor.
“não me iludo. não me satisfaço. minha arte não é o bastante”
A convite escrevi essas linhas sobre músicas fora de moda – um fazer artístico com suas devidas particularidades – mas nada do que está escrito aqui pretendem ser regras gerais ou tem ambições de ser um “manual de produção”. A verdade é que não há regras, há caminhos, por mais clichê que isso possa soar. Todo esse longo e prolixo escrito não passam de experiências e percepções as quais acumulei durante esse pouco tempo de tentativas e produções dentro do campo musical, não há nada mais que isso aqui. Pareço ter habilidade natural para outras coisas que não faço. Até atuo com vocação na música, mas eu seria mais eficaz, talvez, em desenhar ou escrever. Não me vejo atuante como músico – e tudo que isso exige – e sim um explorador sonoro. Contento-me com o fazer. Geralmente tenho tendência a contrapor o que faço anteriormente e buscar o porvir. Para mim é uma análise ou um constrangimento ouvir o que fiz. É sina. Cada arte é expressão ímpar, as vezes perdemos tempo demais por avaliá-las; nossa visão é limitada, e se não há intenções de apreciá-la, bom procurar algo que nos identifique, experienciar é o único final na relação com a arte.
Links para conhecer alguns trabalhos de Pedro Ben: