A nova utopia: um olho aceso na Babilônia

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Por Fernando Abreu (*)

“Eu faço versos como quem sofre, de desalento, de desencanto”. Ligeiramente modificados, os versos de Manuel Bandeira bem poderiam servir de epígrafe irônica à nova coletânea de Regis Bonvicino. Se ausente o tom confessional, desalento e desencanto sobram em A nova utopia. A obra parece destinada a ecoar o questionamento feito por Adorno em 1949 sobre a viabilidade de se escrever poesia depois de Auschwitz. Pergunta retórica, em todo caso.

É inegável que diante, não apenas de Auschwitz, mas também da “bomba da paz”, que transformou duas populosas cidades em forno crematório instantâneo, escrever poesia soa muitas vezes como autoengano. Para muitos, o fim da humanidade foi decretado ali, no florescer daqueles dois tragic mushrooms.

Mas não foi o suficiente, pelo que vemos diariamente nas ruas e nas telas de nossos smartphones, tablets e similares. Nossa queda como espécie parece não ter fim, o fundo do poço não tem fundo.

Faz algum sentido escrever poesia nesse mundo? Por outro lado, a visão do mundo como ruína é necessariamente a visão mais lúcida? E as milhares de pessoas que nesse exato momento estão empenhados em tornar o mundo respirável (literalmente e moralmente) o que são? ridículos fantoches dignos de piedade ou escárnio? “amaldiçoa deus (ou a História) e morre” dever ser o nosso chamado à razão, dando razão à esposa de Jó?

As perguntas são muitas, as respostas nem tanto. A despeito de tudo isso, ou por isso mesmo, poetas continuam escrevendo, a poesia continua se impondo a eles como maldição ou dilema. A nova utopia encara essa condição de olhos abertos e de forma impiedosa. É como um grande olho aberto sobre a miséria da nossa condição neste século XXI. Olho seco, que vê e constata. Realismo capitalista elevada à potência máxima. Abandonai toda esperança!

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Augusto dos Anjos e Lautreamónt são dois personagens (entre vários) convocados pela leitura dessa poesia. O primeiro, a propósito, tem seus Versos Íntimos parodiados no anti-soneto Versos Públicos. O segundo, pela violência imagética por vezes nauseante, com a diferença de que aqui é o mundo real, cotidiano, onde todos somos obrigados a nos espremer. Pelo menos os mortais que não alimentam sonhos biliardários de transferir-se para uma estação orbital.

Poesia da crueldade, sim. Mas com quem? Com sua própria consciência e com a consciência do leitor. Já com a monótona galeria de mendigos, noias e desvalidos em geral, capturados por esse olho desenganado, é preciso dizer que não, embora por vezes pareça o contrário. O fato de eles estarem ali, imundos, privados de qualquer fiapo de dignidade, violentando as páginas de um livro de poemas quer dizer alguma coisa também sobre esse olhar, quando a ordem é a invisibilidade, a instrumentalização ou a idealização maniqueísta.

E aqui voltamos a Bandeira, que talvez tenha sido o primeiro grande poeta brasileiro a escrever sobre um ser humano revirando uma lata de lixo, no célebre poema O bicho, escrito nos últimos dias de 1947, vale lembrar, em pleno rescaldo da II Grande Guerra. Chocado, o pernambucano mal podia acreditar que seu país pudesse gerar uma cena como aquela. Cassado o direito ao choque pela reiteração do excesso, o poeta paulistano, registra o que se tornou uma chaga na paisagem urbana do mundo pós-industrial. Bandeira ainda podia reivindicar um lirismo libertador. O que sobra para os poetas do nosso tempo? A questão insiste, corrosiva: faz algum sentido escrever poesia nesse mundo?

Otávio Paz, que segue incontornável como pensador do fenômeno poético na modernidade e além, não hesitou em classificar a poesia como um ato de fé. Em última análise, é a aposta em algum futuro, e não se trata aqui de nenhuma utopia política ou metafísica. Paz: “A linguagem é a marca – o sinal – não de sua queda, mas de sua essencial irresponsabilidade. Pela palavra podemos ter acesso ao reino perdido e recuperar os antigos poderes.”

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Outro importante pensador do fenômeno poético, Erich Heller, assim observa: “(…) a poesia não pode senão confirmar a existência de um mundo significativo, mesmo quando denuncie a falta de sentido deste. Poesia significa ordem, mesmo quando lance a denúncia do caos; significa esperança, ainda que com um grito de desespero. A poesia diz respeito à real estatura das coisas (…). Creio que é disso que trata este A nova utopia. Poesia, linguagem que se impõe mesmo contra a consciência culpada, aturdida e desalentada dos poetas.

(*) Fernando Abreu é poeta, autor de Esses são os dias (7Letras), Contra todo alegado endurecimento do coração (7Letras), entre outros

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