Por Giselle Ribeiro*
– para ler quando sentir medo –
Chão de exílio (2021), escrito pela amazônida Wanda Monteiro, é a tradução para a linguagem poética, dos horrores cometidos pela humanidade contra a própria espécie, em tempo de ditadura. Embora seja um livro de ficção, ele mistura as realidades da autora e da sociedade em que vive, num contexto de apagamento, dor e morte da espécie. A autora reacende as imagens do período de 1964, fazendo balançar o pêndulo do passado até o presente, como se visitasse as páginas de um álbum de fotografia das famílias brasileiras massacradas pela intervenção do regime militar da época.
Porque não é feito só de realidade, o livro arranca alguma beleza do vivido, atravessado pelo olhar de uma menina, quando se depara com a ausência do pai e espreita as explicações que a mãe tenta esconder, com um seu discurso de proteção da filha.
A linguagem usada pela autora confirma o tom genuíno de uma grande escrita poética, capaz de misturar peso e leveza, como se quisera vagalumear a história e entregar aos leitores mapas que devem ser desenhados por eles cada vez que voltarem ao livro.
Com essa publicação, Wanda Monteiro promete atravessar os tempos martelando a memória para que a geração futura recupere a consciência dos horrores vividos no passado e descubra o desvio dos erros, enquanto a felicidade dobra as esquinas do mundo, num desencontro promovido pela política de uma nação perdida.
Por que esse livro alcança muito mais a fruição, do que o prazer? Porque conta fragmentos da história da sociedade brasileira que teve os direitos violentados e ali é representada por Miguel e sua família.
Wanda risca o fósforo e faz arder a chama da sua memória. Aqui e acolá parece que escutamos o nome de Benedicto Monteiro, pai da narradora, disfarçado de Miguel, nome já conhecido pelos leitores do pai da autora.
Chão de exílio é um álbum de fotografia contando as horas, minutos e segundos de um tempo de felicidade suspenso. Neste livro, pai e filha são reconectados, Wanda diz ter sofrido tudo novamente ao reviver as histórias que o pai lhe contava. É nesta prosa poética, que a autora apresenta aos seus leitores a herança que o Bené lhe deixou: a fertilidade na criação de imagens e o cuidado com a linguagem que vai usar ao narrar.
A prosa é, agora, o gênero escolhido por essa mulher amazônida, que se confunde com a filha do rio, dentro e fora deste Chão de Exílio:
O tempo esse rio. Pode o rio ser essa serpente que me seduz à foz? Pode ser o rio a deusa de barro ou pode ser o pai escrito nas águas? Posso ser eu, em suas entranhas, a caligrafia sanguínea _ o homem e a mulher na transfusão de sua passagem? Posso ser eu a água, esse verbo a conjugar-se em se morrendo e se vivendo à luz do instante em seu ventre?[1]
É da mulher contemporânea guardar memórias e seguir bordando a vida com o vivido, enquanto matéria de aprendizagem. É da mulher de hoje não queimar etapas, não se esconder atrás da tirania, gritar, se perder e se encontrar. É da mulher o direito de falar. Por isso, esse livro nos chega como uma espécie de livro dos aprenderes. Com ele a autora vai, pouco a pouco, nos ensinando os segredos do exílio vivido no passado, que o presente vem cobrando. Por isso, foi tão necessária essa publicação.
No tempo presente, que embora seja outro, quase distinto do narrado, no planalto brasileiro de hoje, há rumores de violência, abuso de poder, representantes da mãe Pátria aguçando a morte, rindo da cara dela e de cada enlutado pela Covid-19. Eles subtraem os nossos direitos e tudo o que julgávamos ter conquistado. Estamos outra vez ameaçados. O passado outra vez, avança querendo demarcar um novo chão de exílio.
As fotografias reveladas, por Wanda, enquanto ato tradutório, tocam intimamente no elemento que Barthes (2012, p 31) chama de punctum. Se considerarmos que a autora deste livro estaria arranhando uma antiga ferida para se livrar do que a amordaça por longos anos. É no punctum que ela se permite revelar e revelar o pai, ainda que use o nome o Miguel, nome de um dos personagens criados por Benedicto Monteiro para a sua trilogia amazônica, lá reside Miguel dos Santos Prazeres e é assim que o punctum se camufla nesta história:
Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete também a ideia de pontuação e em que as fotos de que falo são, de fato, como que pontuadas, às vezes até mesmo mosqueadas com esses pontos sensíveis; essas marcas, essas feridas são precisamente esses pontos. Esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum, pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte ̶ e também lance de dados. O punctum de uma foto é esse acaso que, nela me punge, (mas também me mortifica, me fere).[2]
A narrativa propõe quebras no gênero escolhido pela autora. Na passagem dos aprenderes, há prosa que se enrola na poesia, cada vez que um novo capítulo desponta, essa desconstrução do rigor ao gênero, talvez herança, recomposição de uma convivência poética com a figura paterna, da qual a autora não se deixa desprender, quando, nas redes sociais, ela sempre o mantém vivo em seu diálogo amoroso e pleno de saudade. Assim, ela, vez por outra, escreve cartas ao pai, ainda que ele já tenha feito a passagem.
Digo que não é fácil percorrer gêneros distintos em um mesmo plano de escrita poética e Wanda o faz deslizando como se no ato da escrita se banhasse em água corrente. Ela não se deixa intimidar pelas regras impostas pelas teorias e avança com a audácia de uma Icamiaba, ela solta o verbo estilhaçando as possibilidades do seu uso ou desuso, assim, feito flecha cortante. Ela quer, ela vai ferir o alvo, porque é uma guerreira da palavra que se permite soltar a língua deixando-a escorregar até a ponta do bico da caneta ou dos dedos quando deslizam no teclado do seu notebook.
Nesse vagalumear, próprio da escrita poética, a realidade é um dos ingredientes da receita deste livro. Nele, a autora ora acende, ora apaga o que viveu e determina o direito do leitor ao conhecimento. Assim, acontece quando as crianças escutam, pelo rádio, a notícia da morte de Miguel, ainda que seja um blefe, Luiza desliga o aparelho achando que o certo é por um véu nos olhos das meninas.
A mulher de hoje, a que escreve essa história tem no punho as provocações em denúncias, tanto da política, quanto das noções que temos da infância, quando os adultos decidem diminuir a compreensão que elas devem ter do mundo.
No Aprender o fogo, aquele elemento da fotografia que Barthes (2012) anunciou reaparece, com força, numa escrita rica em fanopéia, enquantoum recurso imagético forte desta autora: “Eu posso lembrar do som que essas botas faziam ao subir a escada: pareciam estacas sendo fincadas em terra batida.”[3], aqui imagem e sons se misturam fortalecendo a prosa poética de Wanda Monteiro.
Depois disso, a autora aproxima sua prosa com a prosa de Bradbury, no livro Fahrenheit 451 (2009)[4]quando narra a chegada dos militares procurando pistas do paradeiro de Miguel e invadem a biblioteca: “Miguel era um homem feito de palavras e elas estavam com ele, em algum lugar da floresta. As palavras estavam em fuga, assim como Miguel.” (MONTEIRO, p. 53 ) Eis o encontro, talvez tramado, talvez não, de duas vozes de força no cenário da escrita poética, encontro costurado com linha resistente de denúncias. A conexão entre Wanda Monteiro e Ruy Bradbury se dá nessa tomada de imagem. Ela nos fala de Miguel, um homem feito de palavras, enquanto ele nos conta das pessoas que se revestiram também nas palavras que liam, aprendendo-as de cor, dando um salto para depois chegar a ser a própria história:
Não estavam nada certos de que as coisas que traziam na cabeça pudessem fazer cada aurora futura brilhar com uma luz mais pura, não tinham certeza de nada, exceto de que os livros estavam arquivados atrás de seus olhos serenos, de que os livros estavam aguardando, com suas páginas ainda por separar, pelos leitores que talvez viessem nos anos futuros, alguns com dedos limpos e outros com as mãos sujas.[5]
Outro momento, em que essas duas prosas se tocam, aparece ali, onde Miguel, é dado como morto pelos militares e Montag, personagem de Fahrenheit 451, também aparece envolto nessa grande mentira tramada para sustentar o poder dos militares, como forma de repressão para quem tentasse subverter a ordem.
“No dia daquela fogueira de palavras, o oficial do Comando, que estufava seu peito com comendas e estrelas sem luz, ordenava: Queimem! Queimem todos os livros desses comunistas” (MONTEIRO, p. 55), outra vez Fahrenheit 451 revisitado. Dois autores que se permitem um encontro com seus escombros, ele/ela refletidos nos arranhões da voz da autora deste Chão de exílio.
O fato é que Wanda Monteiro guardou, por longos anos, o fio dessa memória e agora embebeu esse fio na cola e no pó de vidro, fabricando uma espécie de goma capaz de cortar o silêncio. É esse silêncio rompido que ela salpica com palavras ardendo em chamas e descai sobre nós.
Este não é um livro que se queira ler em um único fôlego. É preciso se ausentar, algumas vezes dele, respirar e depois voltar mais encorajado a pronunciar as verdades plantadas neste Chão de exílio.
Quanto à autora, é preciso muita força para revirar seus assombros e aprender o recomeço.
*Giselle Ribeiro é amazônida, professora de Teoria Literária na UFPA, mestra em Estudos literários (UFPA), Doutora em Estudos da Tradução (UFSC), poeta para adultos e prosadora para a infância. Nascida sob o signo de escorpião com ascendente na poesia erótica e outros gêneros.
[1] MONTEIRO, Wanda. Chão de exílio, p. 15, AMO Editora, Belém, PA, 2021.
[2] BARTHES, Roland. A câmara clara, Nova Fronteiro, Rio de Janeiro, 2012, p.30-31.
[3] MONTEIRO, Wanda. Chão de exílio, p. 153, AMO Editora, Belém, PA, 2021.
[4] BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451; tradução: Cid Knipel, Globo, São Paulo, 2009.
[5] BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451; tradução: Cid Knipel, Globo, São Paulo, 2009, p.218.