Modos de Desabitar o Chão – Atlântida, de Ana Beatriz Domingues (Janaú)

| |

Por Carina Carvalho, São Paulo. É autora do livro de poemas Marambaia (Editora Patuá, 2013), da plaquete Passiflora (edição da autora, 2017) e do livro Corpo clareira (Editora Feminas, 2019), recém-lançado. Tem textos publicados em algumas revistas digitais e impressas. Em <clcarina.wordpress.com> é possível acompanhar um pouco desses caminhos.


Uma casa de águas. Assim Hilda Hilst define, em um de seus poemas, a moradia de um poeta. É de beleza essa construção, tanto no que nos diz a respeito de paredes líquidas, corpo molhado e ondas na cabeça, quanto na ideia de mais espaços possíveis para habitar. Atlântida, livro de estreia de Ana Beatriz Domingues (Janaú), publicado em 2019 pela Editora Urutau, funciona também como universo que evoca as águas, já em seu sumário com três partes de nomes sugestivos: oceano, arquipélago, continente.

Por falar em espaços que ocupamos, cabe aqui contar um pouco mais sobre Ana Beatriz, cuja biografia na abertura do próprio livro diz um tanto dos movimentos que conseguimos observar quando da leitura de seus poemas: “do mar, nasceu numa madrugada de fevereiro, na cidade do Rio de Janeiro. é poeta, artista-educadora e terapeuta holística. […] indígena por parte de mãe. cabocla. mestiza.” O pequeno texto nos diz, ainda, de uma coletânea de autoras lésbicas de que Ana participou “Que o dedo atravesse a cidade, que o dedo perfure os matadouros”.

Os convites ao mergulho, aqui, são muitos, e desde a dedicatória inicial: “para todas as mulheres que ousam afundar navios”. É também a partir da experiência de mulheres, e de amores possíveis entre elas, que os poemas são construídos. No livro, é marcada a relação do corpo que constantemente lida com as águas, dentro e fora: “bom é quando dá sede!”, exclama o primeiro poema.

Leia também:  Tieta: o alter ego da mulher do agreste

Há um percurso a ser feito, caso se queira acompanhar a história de amor nos poemas da primeira à última parte, mas essa história pode também ser lida em ondas, como são afinal as relações que alternam entre profundidade e superfícies de dúvida silenciosa. “hoje cedo pensei em me mudar de Atlântida”, lemos em um poema de “arquipélago”, e podemos prever e de alguma forma temer uma despedida. Alguns dos territórios por onde passa a escrita são bem marcados, com citações a lugares da cidade de São Paulo e de praias em Ubatuba. A navegação proposta nos poemas fala além das águas, também sobre microuniversos bastante palpáveis dos dias e da carne: canto do olho, céu da boca, pelos do corpo, líquens, musgos.

As formas variam: há os textos curtos contrapondo a intensidade do desejo que abarcam, como em: “gosto / quando teu seio / encontra o meu / e nos multiplicamos / em bicos / e bocas”. E há os registros que nos lembram prosa, embora ainda em letras minúsculas, com intensa carga poética e evocando alguns acidentes cotidianos: “tenho saudade dos teus olhos, dói levinho mas não sangra. a abelha naufragada no meu café sofre mais do que nós duas”.

As variações não se limitam à forma, mas também à linguagem. Tal variação não parece um tipo de experimento ou teste de registro escrito da autora, mas a própria comunicação da cidade submersa para onde Ana leva seu leitor, seja na voz que se dirige a uma interlocutora como em carta, seja nos trechos que mesclam espanhol com a língua portuguesa de maneira tão natural que não é fácil encontrar suas linhas divisórias. “idiomas de borboletas”, explica um verso.

Leia também:  3. Notas rápidas sobre política: Shoshana Zuboff e a tirania muda do capitalismo de vigilância.

Entendida essa escrita como nova possibilidade de chão ou convite a flutuar, ao fim da leitura, buscar ar e terra firme é também fazer perguntas como as que se apresentam em um dos poemas do fim do livro: “sem água, o que será de nós duas? como iremos dar nome ao mar?”


Crédito da foto: Paula Ramos

Ana Beatriz Domingues, do mar, tem 36 anos, nasceu numa madrugada de fevereiro na cidade do Rio de Janeiro. É poeta, artista-educadora e terapeuta holística. Bisneta de Benedita, neta de Ecília Dalva e filha de Márcia. Indígena por parte de mãe. cabocla. mestiza. publicou trabalhos em diversas revistas literárias como Garupa, Raimundo, Mulheres que Escrevem e Casulo. Em 2018, participou da coletânea “Que o dedo atravesse a cidade, Que o dedo perfure os matadouros”. Em 2019, participou da zine “São nossas as notícias que daremos do movimento Respeita!” e publicou eseu primeiro livro “Atlântida”, (Editora Urutau) e a zine “Felina Abissal”.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!