Três Perdidos em um Paraíso de Concreto

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Por Ademir Luiz            

Brasília não é uma cidade, são muitas. Primeiro houve a cidade antes da cidade, vislumbrada por São João Bosco, que, na noite de 30 de agosto de 1883, sonhou surgir entre os paralelos quinze e vinte uma grande civilização, uma Terra Prometida de riqueza inconcebível. Depois veio a Brasília de Juscelino Kubitschek, o símbolo arquitetônico e urbanístico de sua política de avançar cinquenta anos em cinco. Não demorou muito para que surgisse a cidade do tédio infinito, cantada pela Legião Urbana e outras bandas brasilienses punk de butique. Há também a Brasília literária de Nicolas Behr e a Brasília cinematográfica de Joaquim Pedro de Andrade. Há a Brasília dos místicos e a Brasília dos noticiários, tanto das páginas políticas quanto das páginas policiais. Cada qual com sua devida exposição na mídia, nas artes e na memória. Qual memória? Pouco lembrada é a Brasília dos candangos, os trabalhadores que ergueram essa cidade de concreto no meio do cerrado goiano. Ganharam um monumento, mas não muito mais do que isso. Afinal, não se constrói um paraíso moderno sem verter muito sangue, suor e lágrimas em modalidades arcaicas de trabalho.

O romance As Margens do Paraíso, do escritor Lima Trindade, rememora a história dos candangos a partir de três, ou quatro, pontos de vista. Ao longo do livro, diferentes personagens provenientes de diferentes regiões do Brasil, com vivências pessoais e culturais diversas, encontram-se em Brasília. A coesão narrativa dessa multiplicidade de olhares ancora-se na própria experiência multicultural e multirregional do autor. Lima Trindade nasceu em Brasília, mas vive hoje em Salvador. É reconhecido como um dos principais nomes de sua geração, tendo lançado as novelas Supermercado da Solidão (2005) e O Retrato: ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014), e os volumes de contos Corações blues e Serpentinas (2007) e Todo Sol Mais o Espírito Santo (2005). Sua obra já recebeu traduções para o inglês, espanhol e alemão. As Margens do Paraíso é seu primeiro romance, sendo fruto de vários anos de pesquisa e trabalho na carpintaria da escrita. Desde o começo foi um projeto reconhecido, tendo sido aprovado em edital de apoio à criação literária da Fundação Cultural do Estado da Bahia em 2012.

Esse mosaico de brasilidade proposto por Lima Trindade é representado por três personagens, tendo um quarto atuando como elemento catalisador. O primeiro é Leda, uma adolescente órfã proveniente do nordeste brasileiro, que teve o corpo e a alma castigados por diferentes tipos de privações e humilhações, mas sem jamais perder a ternura. Ou quase (se você, leitor, não aprecia spoilers, este é o momento oportuno para abandonar essa resenha), uma vez que, em um momento de loucura, comete um ato extremo do qual parecia ser incapaz. É justamente esse ato que a conduz para Brasília. O segundo é Zaqueu, jovem nascido em uma família abastada da cidade goiana de Anápolis, próxima de onde viria a ser o Distrito Federal. Zaqueu possui ingênuas pretensões políticas que se transformarão em obsessão maquiavélica ao longo do livro, resultado da relação delicada e conflituosa com seu pai. Ir para Brasília parece-lhe o melhor modo de exorcizar seus fantasmas e alcançar seus objetivos. O terceiro personagem é o inicialmente farrista e irresponsável Rubem, rapaz proveniente da classe média carioca. Apesar da vida errática, Rubem cultiva certo refinamento cultural e anseios intelectuais que o modificam drasticamente, levando-o para o Planalto Central, onde deseja mudar completamente de vida.

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Finalmente, o quarto elemento é Mauro, primo de Rubem, um engenheiro que trabalha na construção de Brasília. Não apenas trabalha, mas enxerga em si mesmo alguém que está ajudando JK a erguer sua utopia tropical, seu paraíso sonhado por Dom Bosco. Mauro está onde Leda, Zaqueu e Rubem vão, por diferentes motivos, chegar. Não por acaso Leda é do Nordeste, onde se localizou a primeira capital do Brasil. A capital do passado. Rubem é do Rio de Janeiro, a capital do presente que logo se tornará passado. Zaqueu nasceu nas proximidades, nas margens, de onde está sendo erguida a nova capital, a capital do país do futuro. Futuro esse do qual Zaqueu pretende participar ativamente.

Os nomes, como afirmava Umberto Eco, são chaves interpretativas e em As Margens do Paraíso essas chaves estão presentes em suas entrelinhas. A principal referência histórica e literária ao nome Leda remete a rainha de Esparta, que foi seduzida por Zeus na forma de cisne. A Leda de As Margens do Paraíso se deixa seduzir por uma figura, segundo seu olhar inexperiente, de caráter quase divino. O nome Zaqueu faz referência ao coletor de impostos de Jericó que sobe em uma figueira para ver a passagem de Jesus. Todos se surpreendem quando o pregador de Nazaré se convida para hospedar-se na casa do publicano, uma vez que coletores de impostos eram considerados traidores e lacaios dos dominadores romanos. Em hebraico o nome Zaqueu significa algo como “puro” ou “justo”. O Zaqueu de Lima Trindade, no início da narrativa, talvez seja o mais inocente entre os três protagonistas e ao longo de seu desenrolar vai desenvolver um “negócio” escuso entre os trabalhadores candangos que possui semelhança indireta com a cobrança de impostos. Outro nome bíblico é Rubem, o primogênito entre os doze filhos de Jacó, neto de Isaque. Na Bíblia, os filhos de Jacó lançam José, o preferido do patriarca, em um poço seco. Rubem compactua com a violência do ato, mas guardando em segredo o objetivo de resgatar José quando a noite caísse. O Rubem do romance também possui um caráter dúbio, mas marcado pelo desejo de corrigir os erros que cometeu. Mauro, o quarto elemento, advém de “mouro”, como eram chamados os habitantes da Mauritânia, os árabes berberes do Saara Ocidental, que mesmo vivendo no deserto construíram uma grande e poderosa civilização. Esse Mauro, primo de Rubem, percorreu o mundo, mas somente se encontrou no calor do cerrado, na missão de construir uma cidade dos sonhos.

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As Margens do Paraíso é constituído de duas partes. A primeira é formada por diversos monólogos em fluxo de consciência de Leda, Rubem e Zaqueu. Conhecemos cada um deles por dentro. Suas paixões, desejos, planos e dúvidas. Revelam-se personagens complexos e profundos, cada qual diante de um diferente dilema de existência que os afasta de suas zonas de conforto, exatamente por não serem confortáveis. A primeira parte do romance pode ser definida como estudo de personagens, usando fartamente ferramentas da psicanálise e da sociologia.

A segunda parte do romance mescla dois solenes monólogos feitos por Mauro em primeira pessoa e uma narrativa tradicional em terceira pessoa realizada por um narrador onisciente. Mauro torna-se uma furtiva testemunha do encontro trágico entre Leda, Zaqueu e Rubem. Essa mudança de estilo narrativo transformou o tom e as cores do enredo e dos personagens. Se na primeira parte tudo era incerto, oblíquo e onírico, revelando os dilemas mentais do trio de protagonista, na segundo parte praticamente não há mais nuances. O enredo torna-se simples e direto, os personagens ganham dimensões dualistas. Zaqueu torna-se um vilão com atitudes relativamente tradicionais. Seu desejo de vingança o transformou em um tipo asqueroso e bidimensional. Leda, tornada prostituta para sobreviver, parece ter superado as marcas da terrível tragédia que vivenciou no Nordeste. É uma mulher inteligente e romântica, que, a despeito da profissão, só deseja amar e ser amada. Rubem ganha ares de heroico líder operário, assumindo uma militância pura e desinteressada que talvez se esperasse do ingênuo Zaqueu da primeira parte.

O que motivou essa mudança de narrativa? Acredito que Lima Trindade pretendeu mostrar que aqueles mesmos personagens que aprendemos a apreciar na primeira parte, justamente por serem múltiplos e indecifráveis, poderiam ser transformados em arquétipos se fossem vistos de fora. Pois é isso que se espera de uma aventura exemplar sobre a construção de uma cidade. Não há lugar para dúvidas em meio a construção do futuro. Portanto, Lima Trindade denúncia que os candangos, pasmem, eram também seres humano. Não nasceram só para construir. Mas quem se importa? Quem quer vê-los para além de suas histórias romanescas? Quem quer ver Zaqueu para além do estereótipo do rico malvado? Quem quer ver Leda para além da prostituta de bom coração, a “Linda Mulher” bronzeada pelo sol do Brasil? Quem quer ver Rubem despido de seu manto de mocinho abnegado? Talvez apenas Mauro. Esses ricos personagens vistos de fora, descritos por uma isenta narração em terceira pessoa, são apenas miragens. Quanto mais nos aproximamos, mais se afastam. Assim como o paraíso que eles procuravam.

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Em As Margens do Paraíso, Lima Trindade faz o caminho inverso de seus personagens. Se as criaturas saíram de suas regiões de origem para se descobrirem em Brasília, o criador deixou Brasília para redescobrir sua cidade natal a partir da perspectiva da estética literária. O resultado é fruto de laboriosa pesquisa histórica, geográfica e antropológica, mas é, acima de tudo, a transformação da cidade de Dom Bosco, de Juscelino Kubitschek, da Legião Urbana, de Nicolas Behr, de Joaquim Pedro de Andrade, dos políticos e dos místicos, em uma miragem. Uma miragem a que todos perseguem. Mas acabam sempre às margens. O paraíso é para poucos.


Ademir Luiz é presidente da União Brasileira de Escritores de Goiás, doutor em História e professor da Universidade Estadual de Goiás.

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