8 Poemas de Rubén Bonifaz Nuño (México 1923 – 2013)

| |

Tradução e apresentação por Plínio Junqueira Smith*


O poeta e tradutor Rubén Bonifaz Nuño é pouco, ou nada, conhecido no Brasil. Ele foi professor de latim na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e tradutor da poesia clássica latina, tendo recebido diversos prêmios importantes. Mas consagrou-se como um grande poeta, combinando sua formação clássica com um ritmo melódico contemporâneo. Entre os seus livros, alguns dos quais marcados pelo seu conhecimento da poesia indígena, está O manto e a coroa, de 1958, escrito durante a vivência de um amor secreto e proibido. Como epígrafe do livro, lê-se apenas: Aqui deveria estar seu nome. A explicação é dada durante uma entrevista, já aos noventa anos: “É o nome de uma mulher. Não se pode contar essa história. Guardei-a por tanto tempo que agora seria um desprestígio para mim começar a falar”. A omissão do nome da amada, que o leitor jamais saberá quem é, torna o livro universal: a amada não será mais a do poeta, mas a do leitor, aquela que ele (ou ela) traz em seu íntimo. Cada poema mergulha na alegria e na dor, fatalmente já presentes no exato momento do surgimento do amor. Não se trata de analisar racionalmente os componentes do amor, mas sim de intensificar esse sentimento fundamental da nossa existência por meio de sua potencialização. A seleção de alguns poemas desse belíssimo livro procura dar uma ideia tanto da melodia poética de Bonifaz Nuño, quanto da intensidade que ele alcança.


1
Cada dia levanto,
entre meu coração e o sofrimento
que tu sabes fazer, uma fina
parede, um muro simples.
Com trabalho solícito,
com material de paz, com silenciosos
bem-amados instantes, alço um muro
que quebras a cada dia.

Não estás para sabê-lo. Quando sozinho
caminho, quando ninguém
pode olhar-me, penso em ti; e então
algo me dás, sem que saibas, teu.
E o amor me oprime,
me leva de tua mão para ser de novo
o discípulo fiel da amargura,
quando desesperadamente tento
ficar alegre.

Porque sou homem aguento sem queixar-me
que a vida me pese;
porque sou homem, posso. Consegui
que nem tu mesma saibas
que estou partido em dois, que dissimulo;
que não sou eu quem fala com as pessoas,
que meus dentes riem por sua própria conta
enquanto estou, aqui atrás, chorando.

Sei que inutilmente
me defendo de ti; que sem trabalho
me tomas à força, ou me subornas
com tua mera presença. Estou vencido.
Nem sequer poderias evitá-lo.
Até contra mim, estou do teu lado:
sou teu melhor aliado quando me feres.


2
Quando coses tua roupa,
quando em tua casa bordas, inclinando-te
para muito dentro de ti, enquanto o ferro de passar
esquenta na mesa,
e parece que somente te preocupas
com a cor de um fio, com a espessura
de uma agulha, em que pensas? Que invisíveis
presenças te percorrem, que te tornam,
mais do que nunca, intocável?

Como um lume quieto
teu coração se acende e te acompanha,
e faz com que o mundo necessite
das coisas que fazes.

Minha vontade, meu sangue, meus desejos
começam hoje a dar-se conta:
em tudo o que fazes, descobre-se
um segredo, aclara-se uma resposta,
uma sombra se explica.

Como fui simples, amiga: eu pensava,
antes de amar-te, que te conhecia.
Não era verdade. Compreendo. Antes de amar-te
nem sequer te vi; não vi sequer
o que estava em meus olhos: que tinhas
uma luz e uma dor, e uma beleza
que não era deste mundo.

E porque o compreendo, porque sofro,
porque estou sozinho, e vives, docilmente
hoje aprendo a olhar-te, a estar contigo;
a saber deslumbrar-me,
crédulo, humilde, aberto, ante o milagre
de olhar-te subir uma escada
ou cruzar uma rua.


4
Embora estejas longe, embora penses
que estás vivendo sozinha,
sempre que formas ou quebras algo,
quando algo modificas nas coisas
que te cercam diariamente, e ao fazê-lo
sentes que estás abandonada,
que não há ninguém em teu mundo transformado,
não padeces sozinha. Estou contigo.

Trabalho teu e meu
é abrir as janelas, as opacas
paredes, assomarmo-nos às coisas,
e não ficar em paz, não ser felizes
enquanto houver tristeza, enquanto houver
algo que não esteja feito, enquanto chore
sentado numa rua, entre as pessoas,
um cão abandonado.

De tanto entregar-se em vão, está doído
teu coração que segue entregando-se.
Tudo o que tu és, o que amas,
cresce em teu coração, e o transborda, e se precipita
de tuas mãos abertas.

Mas já não entregas em vão; recebo
o que deixas cair. Tua desventura
já não é completa desde que te amo.

Rainha desamparada,
senhora das dádivas perdidas:

porque te necessito te faço falta.
Tua solidão não é somente tua, é nossa;
porque te entregas existo,
e solidariamente respondemos
pela sorte do mundo.


16
Amiga a quem amo: não envelheças.
Que se detenha o tempo sem tocar-te;
que não tires o manto
da perfeita juventude. Imóvel
junto a teu corpo de moça doce
fique, ao encontrar-te, o tempo.

Se tua formosura foi
a chave do amor, se tua formosura
com o amor me deu
a certeza da felicidade,
a companhia sem dor, o voo,
conserva-te formosa, jovem sempre.

Não quero nem pensar o que teria
de solidão meu coração necessitado,
se a velhice daninha, prejudicial
deitasse em ti a mão,
e mordesse tua pele, desvencilhasse
teus dentes, e a música
que moves, ao mover-te, te desfizesse.

Conserva-me sempre na delícia
de teus dentes parelhos, de teus olhos,
de teus aromas bons,
de teus abraços que me mostras
quando sozinha comigo ficaste
toda nua, em sombras,
sem mais luz do que a tua,
porque teu corpo alumbra quando amas,
mais terna tu do que as pequenas flores
com que te adorno às vezes.

Conserva-me na alegria de olhar-te
ir e vir em ritmo, caminhando
e, ao caminhar, mexendo-te
como se regressasses da chave da água
levando um cântaro no ombro.

E quando me torne velho,
e engorde e fique careca, não te apiedes
de meus olhos inchados, de meus dentes
postiços, dos pelos brancos que me saiam
pelo nariz. Afasta-me,
não te apiedes, desterra-me, te peço;
formosa então, jovem como agora,
não me ames; recorda-me
tal como fui ao cantar-te, quando era
eu tua voz e teu escudo,
e estavas sozinha, e te serviu minha mão.


19
Eu não quero perder-te; eu não quero
que por minha causa se desfaça
nem a parte mais frágil ou menor
do que sozinha, para mim, constróis;
eu não quero fazer guerra.

E no entanto, muitas vezes
com a mão armada chego
contra meu coração, e derramo
em meu sangue a bílis, até morrer;

e odiando-me até o fundo
chamo minhas forças, e converto
teu prazer em rancor; em amargurado
silêncio, tuas palavras.
Minha escada que sobe,
minha ansiosa voz, minha boca que te chama,
em prego ardente, pedras,
riso de dentes inimigos.

E quebro o copo que me ofereces
e ardo de sede, enquanto a água
–agora inútil– ludibriando-me, ofendida,
se derrama, se mancha, se atormenta.

Então, assomando-se
pelas frestas da porta,
pode alegrar-se o diabo.

Se com meu amor te machuco,
como podes querer que eu te ame?
Olho minha culpa e a confesso,
e de que me vale confessar minha culpa?
Em ti, qual ferida fecho, ao fazê-lo,
das que abri? E se talvez
posso fechar alguma,
como pedir que me perdoes
as cicatrizes que em teu amor coloquei?

Meu coração, que sinto
como fruta comida por vermes,
não quer ferir, e machuca;
quer alegrar-te, e te entristece;
treme procurando-te,
e te perde, te fustiga, te aliena.


24
É tão amargo, escuro, pobre
o que olho ao dormir, que mentiria,
não sabes quanto, se dissesse que és
a mulher dos meus sonhos.

Quão fragmentada imagem tua,
quão parcial e sem forma a que posso
sonhar; a que me alcança pelas noites.
Tu serás sempre
tu, a mulher de quando estou desperto.

Não basta abrir os olhos. É preciso
despertar mais e mais e mais acima
para poder sentir-te. Porque muito
se equivoca quem pensa que minha amada
é somente a pequena
mulher que vai e que vem por todas as partes,
e deixa em todas as partes
uma miúda luz que não existia.
Minha amada, te digo, é outra coisa.

Bem desperto é preciso estar para olhar-te.
Para ver, ao passar, que estás vestida
com um manto real, no qual ocultas
tua incandescente solidão de lâmpada,
e tua força puríssima, e o voo
de tuas asas de pássaro aprisionado.

Eu não quero dormir para sonhar-te,
quero aprender a despertar inteiramente.
Para olhar o que ninguém, em nenhum tempo,
olhar em ti pôde.
O que tu és, o somente teu;
o que vive atrás e por cima
de tua cortiça clara.

Além de meus olhos, de meus cinco
sentidos, necessito estar desperto
para começar a ver-te como és.


26
Demoradamente, pretendo
saber o que tu pensas, o que sozinha,
quando eu não te olho, vai se formando
dentro de ti, enchendo-te de doce
piedade, de obscuros, ternos sentimentos.
E demoradamente sofro.

Sim. Sei isso. Muita gente
padece; muita gente está comida
por sua fragilidade e sua miséria.
E está bem, pois o queres, que sua opaca
desventura te siga, e que te doa
ser feliz; que tua felicidade,
como se a roubasses, te envergonhe.
Mas qual parte tua, quando sozinha
estás, resta para mim?

Como há gente pequena,
como não posso sempre estar contigo,
como tiveste que seguir vivendo
quando eu não soube deter-te,
ao encontrar-te de novo, ao saudar-te,
o medo mais horrível
me ocupa todo. Ao perguntar: “o que fizeste?”,
sinto que estou nu, que uma chave
são essas três palavras
que abre minha porta para a desgraça.

Eu não quero dizer-te
que sou capaz de padecer, que às vezes
até a água que bebo me machuca.


34
Como não estamos a sós no mundo,
e olhamos para fora, e nossa ilha
de amor está em comunicação
por pontes incontáveis
com as necessidades, as tristezas,
a dor das pessoas;
como te sentes exigida
por uma obrigação mais forte
que tua própria ventura,
já não te basta que eu te diga,
ou te cante ou te chore que te amo
para que acredites que te amo.

Pediste-me que pense
em combater; que assuma, por meu orgulho
e por teu amor, meu lugar,
meu posto de soldado na amargura
dos exércitos humanos.

Porque te amo e porque sou, te escuto;
e porque quero ser porque te amo.

Estou aqui, dizendo-te
que não esqueci o que devo;
e estou contente, porque corro
meus riscos ao teu lado. Porque à minha esquerda
e à minha direita estás lutando,
e porque sei que quando volte
a descansar meus braços, a fechar
minhas recentes feridas,
já não será para estar sozinho.


*Plínio Junqueira Smith é filósofo, professor, poeta e tradutor. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, fez um pós-doutorado na Universidade de Oxford e outro na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É professor associado da Universidade Federal de São Paulo. Publicou diversos livros e artigos de filosofia em revistas especializadas e dois livros de poesia (Corpo estranho, São Paulo: Alameda Editorial, 2011; A rosa branca, Brasil/Portugal: Editora Chiado, 2017). Também traduziu diversos livros e artigos de filosofia e um livro de poesia (Lizalde, Eduardo, O tigre em casa e a caça do tigre: uma antologia poética, São Paulo: Alameda editorial, 2011).

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!