3 Poemas de Alvaro Mutis (Colômbia, 1923 – 2013)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Eu creio que se houve alguma influência da revolução cubana na poesia de língua espanhola – coisa de que duvido profundamente – a única que se poderia notar seria a frequência dos lamentáveis verborrágicos e repetitivos poemas sobre Che Guevara e sobre os demais temas que rodeiam este fenômeno de Cuba. Estou complemente alheio a este tipo de atividades políticas, na verdade creio como Borges, e o creio sinceramente, que a política é uma das formas mais lamentáveis da superficialidade. Se a revolução cubana influiu na poesia latino-americana, no idioma dos jovens poetas, não creio que tenha sido para o bem, mas sim para cair, como disse, na verbalização e nas longas enumerações, nessas lamentáveis facilidades a que nos andou acostumando o pior Neruda, e que certamente não creio que sirvam ao autêntico propósito da poesia.

[…]

Descreio completamente desta condição de testemunho do poeta, de testemunho de seu tempo e de fixador do mito; eu diria, ao contrário, que o poeta cria o mito, o poeta possui uma fonte de possibilidades criadoras de gerar todo tipo de mitos que são os que irão ficar e permanecer. Ao redor dos mitos criados por Homero vivem ainda os gregos na memória dos homens; ao redor do maravilhoso mito da Eneida cantado por Virgílio se sustenta no ar o império romano; ao redor da Divina Comédia de Dante segue palpitando e vivendo a Idade Média, não com Dante como testemunho nem como fixador do mito, mas sim como criador absoluto, como visionário.

Acerca da conduta do poeta, creio que não se deve e nem se pode dele exigir nenhuma conduta especial. O poeta é um senhor que anda pela rua como qualquer homem, só que possui essa condição de que escreve poesia, que é uma forma de oração, de consagração e celebração das coisas, do homem e da vida do homem e das coisas que o rodeiam, mas sem intenção testemunhal. Esta é uma coisa sobre a qual tenho insistido por muitíssimo tempo e que creio adolescemos na América Latina, de carregar o poeta com uma série de responsabilidades sociais e cívicas que não me parecem senão profundamente lamentáveis.

[…]

Eu creio que a poesia contemporânea, como toda poesia, não vai a nenhuma parte, vai, se se quer dizer assim – se acaso me colocam contra a parede para responder aonde vai –, vai aonde vai a poesia de Quevedo, de Garcilaso, de Cernuda, de Jorge Guillén, de Octavio Paz. A poesia não vai nem vem, a poesia é uma permanência, a poesia não possui essa relação tão imediata com o tempo, tão lamentavelmente jornalística como insistimos em pensá-lo na América Latina. A poesia não possui tempo, a poesia é uma criação mágica que tem muito a ver com uma espécie de demoníaca condição de certos seres de deixar nas palavras o testemunho de sua desgraça, de sua vida, de suas pequenas felicidades, de suas ilusões e de sua morte. Essa é a poesia. Creio que isto é a poesia e que bem pouco tem a ver com o curso do tempo, com o passado, com o presente ou com o futuro.

ALVARO MUTIS
“Alvaro Mutis: pensando con los dedos, con las manos…”, entrevista concedida a Miguel Ángel Zapata. Revista INTI # 26-27. Rhode Island, 1988.


NOTURNO

A febre atrai o canto de um pássaro andrógino
e abre caminhos para um prazer insaciável
que se ramifica e cruza o corpo da terra.
Oh, a navegação infrutífera ao redor das ilhas
onde as mulheres oferecem ao viajante
o equilíbrio fresco de seus seios
e uma extensão de terror nos quadris!
A pele pálida e macia do dia
cai como a casca de um fruto infame.
A febre atrai o canto dos esgotos
onde a água atropela os desperdícios.


CADA POEMA

Cada poema um pássaro que foge
do local indicado pela praga.

Cada poema um traje da morte
pelas ruas e praças inundadas
na cera mortal dos vencidos.

Cada poema é um passo até a morte,
uma moeda falsa de resgate,
um tiroteio no meio da noite
perfurando as pontes sobre o rio,
cujas águas adormecidas viajam
da cidade velha para os campos
onde o dia prepara suas fogueiras.

Cada poema um toque rígido
daquele que jaz na lousa das clínicas,
um ávido gancho que percorre
o lodo macio dos túmulos.

Cada poema um lento naufrágio do desejo,
um rangido dos mastros e cordames
que sustentam o peso da vida.

Cada poema um estrondo de telas que desabam
sobre o rugido congelado das águas
o cordame branco da vela.

Cada poema invadindo e rasgando
a amarga teia do tédio.

Todo poema nasce de uma sentinela cega
que grita nas profundezas da noite
o lema de seu infortúnio.

Água do sonho, fonte de cinza,
pedra porosa dos matadouros,
madeira à sombra das sempre-vivas,
metal que dobra pelos condenados,
óleo funeral de dois gumes,
mortalha diária do poeta,
cada poema espalha pelo mundo
o cereal azedo da agonia.


RAZÃO DO EXTRAVIADO

Para Alastair Reid

Eu venho do norte
onde o ferro é forjado, as barras trabalhadas,
onde são feitas as fechaduras, os arados,
as armas incansáveis,
onde as grandes peles de urso
cobrem paredes e camas,
onde o leite aguarda o sinal das estrelas,
do norte onde cada voz é uma ordem,
onde os trenós param
sob o céu sem sombra de tempestade.
Estou indo para o leste
em direção aos canais mais quentes
de argila e lodo
em direção à insônia vegetal e paciente
que alimentam as chuvas sem medida;
vou até os estuários, em direção ao delta
onde a luz repousa absorvida
nas magnólias da morte
e o calor inaugura vastas regiões
onde os frutos se decompõem
em uma densa sesta
embalada pelos fragmentos
de insetos incansáveis.
E ainda assim eu me curvaria
pelas tendas de peles, a exígua areia,
o frio rastejando pelas dunas
onde o cristal canta
sua agonia atordoada
que o vento arrasta
por entre túmulos e placas
e desvia o curso das caravanas.
Eu vim do norte,
o gelo anulou os labirintos
onde o aço cumpre
o sinal de sua aventura.
Falo da viagem, não de suas etapas.
No leste a lua vela
sobre o clima que as minhas chagas
solicitam como alívio
de um espanto tenaz e sem remédio.

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