Laurens Vancrevel (Holanda, 1941). Poeta, ensaísta, tradutor e editor, vinculado ao Surrealismo. Foi diretor da editor Meulenhoff.
Ensaio traduzido ao português por Floriano Martins.
Ilustração/ colagem: “frutos estranhos” da artista Lia Testa
As melhores razões – um perigo ameaçador, o temor e desejo que o empurra – não detenhas o prazer melancólico neste momento para se instalar confortavelmente no sofá da verde esperança.
Pablo Picasso, Le Désir attrapé par la queue
Desejo, esta selvagem e deliciosa força de vida, sempre preocupou a consciência humana, enquanto que ao mesmo tempo a encanta. Os filósofos tratarem cuidadosamente de encaixar o desejo em seus sistemas éticos; os psicoterapeutas lhe deram um lugar entre as desordens mentais, para poder curar a humanidade do mesmo; os códigos sociais o reduziram à invisível esfera privada onde foi aniquilado por códigos morais da decência. Somente os surrealismo se atreveram a fazer do desejo, em todas estas manifestações, o núcleo de sua filosofia de vida.
Assim que, não é de assombrar que todo esse desejo e prazer se convertessem em um dos principais motores do movimento surrealista desde sua concepção, há aproximadamente um século. As chaves do desejo se encaixa em uma extensa tradição de publicações, exposições e manifestações neste tema. Para mencionar alguns: La Mariée mise à nu par ses célibataires, de Marcel Duchamp; a famosa e escandalosamente franca pesquisa coletiva de sexualidade realizada pelo grupo surrealista nos anos 1920 do século passado; L’Âge d’Or, o milagre cinematográfico de Luis Buñuel; L’Union LIbre, esse obsceno e encantador poema acerca do desejo, de André Breton, e seu surpreendente livro L’Amour fou; e mais recentemente as lendárias exposições coletivas E.R.O.S. e Intrusion in the Enchanter’s Domain, além de Marvelous Freedom: Vigilance of Desire, e sem esquecer a última obra prima de Buñuel: Cet obscur Objet du Désir.
A besta multiforme e de muitas cabeças
Platão, o antigo filósofo grego, chamou o desejo de “uma besta multiforme e de muitas cabeças”. Seu igualmente famoso colega Aristóteles era da opinião de que o desejo é essencial para a vida humana, porém que bons e decentes desejos e prazeres só podem ser atribuídos aos humanos. Aristóteles desestimou os desejos e prazeres ignominiosos e depravados como expressões de um comportamento bestial. O desejo foi considerado durante a era Cristão como um instinto animal, não humano, que teve de ser submetido e domesticado. Tais considerações morais concernentes ao desejo e ao prazer deixaram profundas marcas na história da civilização ocidental. Espinoza, o iminente pensador do método para alcançar o estado da felicidade, baseou sua ética no poder da razão. Ele aprovava todos os desejos que fossem controlados pela razão. Porém considerava que todos os desejos irracionais seriam nocivos para a felicidade humana. Sigmund Freud, o revolucionário analista da mente humana, era também um médico: ele estava concentrado na cura de enfermidades e pensou que as desordens mentais poderiam ser causadas por impulsos mentais, tais como o desejo. Ele defendia que ofertando à consciência as causas inconscientes das desordens mentais, isto poderia resultar em uma recuperação, e que os efeitos perturbadores do desejo inconsciente poderiam neutralizar e sanar, aos torná-los conscientes. A psicoterapia de Freud é um método para adaptar os impulsos mentais perturbadores a um nível de normalidade.
André Breton, no entanto, não considerava nem o desejo nem o prazer como uma ameaça à felicidade humana, pelo contrário, chamou a estas duas fontes vitais de segurança própria do ser humano. “O desejo é o maior contribuinte de chaves”, disse. “Realize seus desejos para poder realizar a si mesmo.”
O direito a sonhar
A abertura otimista dos primeiros surrealistas com respeito ao desejo foi ensombrecida desde a década dos 50 do século passado, quando um incremente excessivo do mercado de consumo massivo de todos os produtos básicos teve lugar, para gradualmente ser seguido pelo Mercado do entretenimento e outros produtos imateriais, tais como reconhecidas obras de arte. A realização dos desejos começou a aumentar, sujeita aos ardis do Mercado comercial e à publicidade, que imperceptivelmente ditaram aos consumidores o que deviam desejar. Intrinsecamente ligada ao auge massivo dos truques de mercado é a comercialização geral da vida das sociedades capitalistas, causando a atribuição de um valor econômico a tudo, como o maior mérito. Os desejos pessoais do indivíduo foram presa dos poderosos interesses comerciais, de modo que os desejos foram trocados por necessidades comerciais para obter objetos de moda e impessoais.
A maior crítica desta devastadora mercantilização da vida é possível rastrear em muitos poemas, ensaios e obras visuais dos surrealistas. A Exposição Internacional do Surrealismo L’Écart Absolut, de 1965, a converteu em um dos mais importantes gritos e batalha. Todos os participantes da exposição atacaram frontalmente a sociedade de consumo na declaração coletiva chamada Tranchons-en (Deixemos de…). Eles denunciaram a mudança das políticas democráticas pela ditadura social dos gestores econômicos, juntos com as muitas pressões econômicas para forjar uma sociedade de conformismo e de comportamento de rebanho – publicamente glorificado em eventos massivos para esportes e eventos comerciais para jovens. Uma citação: “O prazer que se produz pela maravilhosa busca de si mesmo e manifestando-se a si mesma em mitos, e ter êxito para sobreviver a seu declive ou de repente renascer além de sua ruína, é inseparável, em nossa opinião, da apelação de liberdade. Tem sua fonte no Desejo, no mais profundo e amplo sentido da palavra, da qual o “estudo das necessidades” e amoldura socioeconômica imposta por tais estudos, reduzem o desejo a uma parodia sombria. […] Tudo o que conta na história da civilização tende, em última instância, ao mesmo momento em que a noite extrema do Desejo ilimitado tende, de algum modo, ao lampejo luminoso das palavras ‘Mais Consciência’, ditas por todos os videntes, cada um com seu acento.”
Seguindo as ambições de The absolute leave, Bernard Caburet promulgou em 1967 uma nova Declaração dos Direitos Humanos centrada no Direito Humano de Sonhar. A declaração foi amplamente anunciada nos muros das ruas de Paris. Citando: “O direito de sonhar é o direito de cada cidadão de desfrutar plenamente suas noites da maneira que lhe agrade e de obter prazeres dos encontros sexuais e suas outras ocupações”. Nesse mesmo ano, Robert Guyou publicou um manifesto acerca do desejo que foi avalizado por todo o grupo surrealista em Paris. Cito: “Queremos difundir a ideia de que a pendente inclinada para a qual os desejos humanos têm que submeter-se por causa da pressão da máquina publicitária, não encaixa com a natureza humana”.
Fazer amor com a revolta
A memorável revolta social dos estudantes e trabalhadores de Paris em maio de 1968 foi totalmente apoiada pelos surrealistas. Certamente ideias surrealistas e aquelas de outros movimentos libertários inspiraram notavelmente aquela revolta. No entanto, os líderes capitalistas conservadores não toleraram uma verdadeira mudança social e mental: sua contrarrevolta incluiu muitas estruturas sociais opressivas com um toque aparentemente mais democrático. As autoridades insistiram em ir passo a passo com a transformação das sociedades democráticas europeias em mercados livres para cidadãos manipulados, adictos do comunismo.
O espaço público de Paris durante a revolta de maio foi coberto com grafites de slogans surrealistas, como: “Dê seus mais ardentes beijos aos cartazes da revolta”, e “Se queres desfrutar, faz amor com a revolta”.
O enorme projeto de Vincent Bounoure e seus amigos, para trabalhar fora dos princípios teoréticos do surrealismo naquele muito oportuno livro La Civilisation surréaliste, 1976, deu muita ênfase ao desejo e ao prazer, bem como às muitas ameaças contra eles. Vratislav Effenberger, o checo coautor do projeto agregou em uma de suas muitas contribuições que a sociedade de consumo priva o indivíduo do verdadeiro objeto do deseo, causando-lhe uma desumanização. Bernard Caburet, o mesmo que inventou o direito humano de sonhar, escreveu, em sua impressionante contribuição: “Seguimos esperando os antigos poderes do desejo. Porém somos conscientes de sua impotência na situação atual, de modo que sua derrota parece ser inevitável. Nós o sabemos, porém este conhecimento nos proporciona o poder e a verdade para manter o desejo da aniquilação da sociedade de consumo.”
O poeta e teorético surrealista Octavio Paz denunciou a sociedade capitalista de consumo em sua leitura na recepção do Nobel (199). Disse: “Uma sociedade que está dominada pela maldade de produzir mais para poder consumir mais, certamente tratará as ideias, os sentimentos, as artes, o amor e inclusive os seres humanos, como meras mercadorias”.
O espelho de duas caras
No ano passado o grupo canadense Liaison Surréaliste levou a cabo uma importante exposição surrealista em Montreal que foi chamada La Chasse à l’objet du désir. O tema do desejo e seus desafios foi discutido a fundo no catálogo da exposição de uma série de surrealistas de muitos países. Estas contribuições à discussão dão uma visão interessante das ideias atuais dos surrealistas de nosso tempo com respeito ao futuro do desejo individual. Tratarei de resumir alguns dos pensamentos expressoas na Caça do objeto do desejo.
O músico e colagista mexicano Enrique Lechuga e os coorganizadores da exposição são da opinião de que uma forte e nova ameaça ao desejo individual é de se esperar pela explosiva digitalização massiva da vida social, já que – escrevem – “a mutação para uma vida totalmente digitalizada pode resultar em uma redução absoluta do desejo individual a um conjunto de necessidades supérfluas. Chamadas de ferramentas inteligentes que nos deixaram a mercê de sonhos obrigatoriamente predeterminados.” O grupo Liaison Surréaliste pensa que manifestar-se contra uma sociedade digitalizada será inevitável para poder manter vivo o desejo individual. Guy Girard, o pintor e poeta francês, se referiu à famosa frase introdutório do livro de Breton, O surrealismo e a pintura: “O olho existe em seu estado selvagem”. Girard observou que os animais selvagens em nosso tempo dispõem de muitos menos espaço de sobrevivência porque suas áreas de caça foram saqueadas no que respeito à vida animal e vegetal essencial. O mesmo ocorreu, diz Girard, com a imaginação e o desejo humano que estão sendo confrontados por uma crescente colonização do espaço da livre imaginação humana. Esse espaço está sendo de igual maneira saqueado: os magnatas dos negócios industriais da cultura de massas o esgotam por puro interesse próprio. Os surrealistas devem tratar de encontrar a maneira de voltar a encantar o mundo, conclui.
Penelope Rosemont e seus amigos do grupo surrealista em Chicago escrevem: “Devemos desenvolver novas senhas, novas técnicas e experimentos, novas criações que sejam aptas para a eliminação das sombras que o eclipse solar atirou no desejo”. O poeta e colagista brasileiro Sergio Lima é da opinião de que cada representação de um corpo desejável continuará evocando o sublime objeto do desejo pelo poder mágico da transgressão, assegura. “O desejo é um espelho de face dupla”, diz a poeta canadense Beatriz Hausner; “por um lado é a semelhança, pelo outro é o fantasma do desejo”. Devemos nos negar a aceitar o fantasma.
A única força motriz
Após cerca de um século de surrealismo, o desejo segue sendo um dos pontos chave. Em seu Manifesto do Surrealismo (1924), disse André Breton: “Depende unicamente do indivíduo pertencer completamente a ele mesmo, ou seja, manter a multidão de seus desejos convertendo-os a cada dia em uma formidável estado anarquista. A poesia lhe ensinará como.” Contudo, em nosso tempo não podemos fechar os olhos para o impacto das rápidas e crescentes técnicas de controle remoto que as célebres “coisas da Internet” terão na vida de todo o mundo. Esta chamada inteligência artificial, combinada com um mercado comercial muito mais agressivo, mudará totalmente os padrões de necessidade e desejo no rápido avanço do “paraíso dos consumidores”.
Agora as pessoas estão geralmente temerosas com o automatismo e a inteligência artificial porque esses robôs tecnológicos os retirarão de seus empregos. Os surrealistas são da opinião que a redução de empregos, por causa do automatismo, não é o problema real. A liberdade não é um assunto de estar empregado, e não haveria nenhum problema da renda para os desempregados se a sociedade estivesse disposta a redistribuir socialmente os ganhos econômicos da redução da força de trabalho de uma maneira justa e equitativa, de modo a por fim ao criminoso saque atual da riqueza das nações por magnatas do capital, menos de um por cento da população. Os surrealistas veem um perigo muito maior de automatismo e inteligência artificial na incessante intenção de obter a adicção total das pessoas do que aquilo que imperceptivelmente ditam os que o rejeitam, pela perda de sua própria identidade e desejos privados.
Os ataques comerciais e digitalizados contra os desejos privados e os sonhos são, sem dúvida alguma, incomparavelmente muito mais fortes do que se podia prever há meio século, pelos criadores do Desejo absoluto e da Civilização surrealista. Necessitaremos mais do que apenas lições de poesia para defender nosso direito de sonhar e desejar.
Quem sabe esteja certo Enrique Lechuga ao chamar a revolta, como um último meio para deter o saque da vida privada e da liberdade. Porém, sendo uma revolta, deveria adotar um cuidadoso enfoque anarquista se queremos aspirar a lograr o êxito desejado – não sendo para todos, ao menos que comecemos por nós mesmos. Nossos adversários são bem poderosos e devem lutar ferozmente para manter suas imensas fortunas para eles mesmos; e farão de todo o possível para resistir às nossas ideias. No entanto, se difundimos ativamente isto, como propôs Robert Guyon, faremos com que todos aqueles que entendem o que está em jogo sejam cada vez mais capazes, de modo que se convertam em imunes à escravidão das inúmeras perversas técnicas de inteligência artifiial de nossos adversários.
“O desejo, a única força motriz do mundo”, escreveu André Breton em seu livro L’Amour fou. O real desejo pessoal deve manter-se livre dos falsos benefícios do paraíso capitalista da conformidade e do consumismo. A força motriz de nossa vida será mantida se continuamos a defendê-la.