As Chaves do Desejo e o Surrealismo no Século XXI – Diálogo com Amirah Gazel e Alfonso Peña

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Alfonso Peña é narrador e artista plástico. Amirah Gazel é artista plástica. O casal nasceu e vive na Costa Rica, são agitadores culturais de primeira linha, responsáveis por edição de revistas, livros e diversas articulações vinculadas ao Surrealismo. A entrevista, realizada por Floriano Martins, se deu em função da primeira Exposição Internacional do Surrealismo realizada na América Central & Caribe, uma brilhante iniciativa do casal.

Entrevista traduzida ao português por Floriano Martins.

Ilustração/ colagem: “pensamento de poeta” da artista Lia Testa


FM | O que vocês estão buscando com esta primeira exposição internacional do surrealismo na América Central?

AG & AP | Buscar, o que se pode chamar “buscar”, na realidade, não temos nada que buscar.

Dito isto, a origem de tudo podemos rastrear em uma zona neutra, em encontros casuais e surpreendentes. Até algum tempo, os organizadores “não nos conhecíamos” e foi mais ou menos desde 2012 que intuímos e observamos muitos pontos de coincidência, concordâncias, nexos e ramificações que temos ambos com o surrealismo: organização de exposições internacionais, artistas amigos em comum, contatos, revistas, editoras, publicações de livros, antologias do surrealismo, estilo de vida surreal.

Ao nos encontrarmos anos depois (2014), e ao compartilhar ideias e projetos, começamos a jogar um jogo de bola, uma espécie de pingue-pongue cósmico – como malabaristas -, e em um dado momento nos perguntamos, por que não realizamos uma exposição do Surrealismo na Costa Rica e América Central? Esta é a parte poética do encontro.

Posteriormente, como é certo, chegamos a interiorizar, aprofundar o tema, e como é sabido que no Surrealismo, em suas origens, está a magia, está todo esse mundo imperceptível, que não é tangível, essa magia que se encontra escondida na história da América Latina, de nossos ancestrais, pois então, que melhor lugar senão a América Central para poder gerar uma exposição que pode agora criar uma união internacional, porque as exposições surrealistas sempre são sinais de manifestação de união, apesar das conhecidas querelas no movimento.

É assombroso, em menos de seis meses, reunimos mais de 100 artistas, 300 obras e 23 países, é uma coisa maravilhosa, acreditamos que nenhum governo latino-americano poderia conseguir isto.

FM | André Breton estava de acordo com uma sábia observação de Gurdijieff, de que “nada pode chegar a bom termo sem uma organização”. O que se pode aclarar acerca da organização e estrutura desta exposição e qual é a razão de seu título?

AG & AP | O movimento surrealista teve sempre autonomia na organização, e isto é estupendo, nas diversas instâncias nos autofinanciamos, publicamos nossos livros de colagens, de arte e de poesia, as edições numeradas e assinadas pelos artistas, expusemos em nossos espaços, para as diversas exposições financiamos nossos envios, não nos preocupamos com os seguros das obras, não há alfândegas, não existem as fronteiras, em síntese, é uma “realidade paralela”, uma espécie de mundo subterrâneo, com uma dinâmica própria, um fio invisível que amarra os diversos horizontes geográficos.

La vie ne pas toujours en rose, também encontramos “dificuldades” com alguns países latino-americanos, principalmente com a chegada das obras, citemos um exemplo: a Argentina, onde o tema dos correios é muito complicado. Sem negar a caçada aberta ao financiamento do catálogo.

Com respeito à organização da exposição As chaves do desejo, por trás dela há um bom arcabouço, experiência, credibilidade, e tudo isto se soma positivamente, as obras chegam e regressam, haverá uma semana de atividades culturais (lançamentos de livros surrealistas, performances, recitais poéticos). E certamente um catálogo digital, uma difusão mundial, razão pela qual quisemos fazê-lo em quatro idiomas, sem falar de uma desejada edição especial impressa. Vamos ver o que conseguimos magicamente.

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Temos assegurada uma muito boa infraestrutura para a exposição que será realizada na antiga capital do país, a cidade de Cartago, e uma série de colaboradores muito importantes.

Devemos lembrar que o grupo Agorart/Camaleonart organizou várias exposições surrealistas internacionais com muito êxito e conta com uma ampla bagagem no tema da convocatória, organização, logística e manipulação de obras de arte.

O título As chaves do desejo se deu em uma busca coletiva e chegamos ao desejo porque é uma evidência da época, é o motor que nos permite nos movermos, a pulsão que nos inspira, e é fundamental na psicologia do ser humana, apesar do difícil que é defini-lo, e é curioso porque o desejo move justamente a conduta do Ser, a humanidade está impregnada de desejos.

O desejo tem sido sempre expressado de vários ângulos pelos surrealistas; se observado de um ponto de vista erótico, é um segmento mais freudiano; no entanto, esta exposição toma um caminho que acrescenta o xamã em cada ser, um ar junguiano que é a apresentação do desejo em outra dimensão. Visto como caleidoscópio.

Se fazemos um balanço das obras que chegaram à exposição, nos damos conta de que a temática é muito aberta e plural, repleta de liberdade criativa, na busca de cada artista, o que reafirma a filosofia da mostra. Não obstante alguns terem sido críticos em relação a este título, até mesmo o qualificando de “clichê”, ao mesmo tempo podemos submergir e pensar que o surrealismo muitas vezes foi qualificado de “clichê”, muito embora, como se diz em alguns círculos, “o surrealismo é um clichê de qualidade…”

Neste caso o desejo é uma gama ampla de possibilidades, que pode girar e formar figuras, abstrações, ensambles, misturas, poemas, metáforas, romper fronteiras, esquemas, velhos arquétipos abolidos.

É interessante que, ao observar as obras e as diversas propostas, notamos que em 70% das mesmas apresentam muitas perspectivas e desenvolvimentos espirituais, esotéricos, experimentais, inconscientes, muito mais do que erótico, sexual, símbolos curativos.

Para sintetizar, nesta exposição o desejo se mostra como um grande diafragma na forma de chave que abre um leque inconsciente de múltiplas variantes.

FM | Muito me atrai a ideia de “um clichê de qualidade” e estou certo de que a arte de mais intensa vibração espiritual é justamente aquela que há ultrapassado essa distinção banal entre as duas faces da mesma moeda. De modo que o desejo é uma das principais portas de acesso ao pensamento mágico surrealista. Bom, é possível falar um pouco da montagem da mostra?

AG & AP | Floriano, embora seja mal agouro “vender a pele dos lobos antes de caçá-los”, te diremos que será ótima e com muitas surpresas.

Vale esperar, pois a noite é longa!

FM | E o que opinam vocês da atualidade do Surrealismo em uma época incrivelmente e demasiado fragmentada justamente pelo excesso de meios e tecnologias?

AG & AP | No verão de 1964, André Breton conversava com Octavio Paz, e durante a conversa que tiveram o primeiro expressou: “Eu não estou certo se o mundo está começando, ou se vai se definir com afirmação ou negação, mas o que sei é que nós, os surrealistas, vivemos em uma zona neutra e não necessitamos aprovar ou desaprovar absolutamente nada”.

Na realidade, Floriano, o que está sucedendo no planeta sempre se deu, embora agora, como dizes muito bem, os meios de comunicação têm tamanha dimensão de repercussão que aproximam todo este tipo de informação e desinformação, nos obrigando a ser seletivos, criando como uma espécie de paranoia no inconsciente coletivo e uma aceleração que na realidade nada tem a ver com essa realidade escondida do ser, que os surrealistas perpetuamente chamamos: a poética realidade paralela. Uma manifestação do surrealismo neste momento vale bem mais como uma chamada à ordem do inconsciente, dos bons observadores, para intensificar que há outra dimensão que está fora do tempo e que não é afetada por todas estas situações terrestres, mundanas.

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Podemos ainda acrescentar que a outra face das novas tecnologias nos favorece, muito além de sua atomização emocional, sua informação e sua desinformação, e o melhor que logra é que estejamos todos conectados de um modo cotidiano e  virtual, e que já não usemos a telepaia – como se usava há algum tempo -, embora ainda seja possível.

Inclusive nos chama a atenção que, através do mundo cibernético, contatamos para a mostra muitos novos amigos, grupos, corpúsculos, células, que trabalham e pertencem ao surrealismo.

E esta moderna via tem nos revelado que o surrealismo é orgânico e que conforma uma linhagem bem grande e que, com o passar do tempo, se revitaliza e cresce constantemente.

Atualidade ou não, contemporâneo ou não, as novas tecnologias, acreditamos, não nos afetam em nada, aos surrealistas, sendo um fenômeno paralelo que usamos para intervir criativamente.

FM | É verdade, sem esquecer que os riscos tornam a vida um lugar muito mais saboroso. Recordo Hugo Ball, em 1916, ao dizer que a falência das ideias havia destroçado o conceito de humanidade. Agora mesmo temos um pouco a ideia de viver um tempo exânime, mais propício à negação e destruição, como há um século se passou com o Dadaísmo. Que mundo estamos construindo hoje em meio às migalhas do século XX?

AG & AP | Os seres humanos sempre criaram impérios que se autodestruíram, de igual modo a humanidade perpetuamente tem buscado a forma de autodestruir-se; parece ser parte do desequilíbrio necessário para crescer. Muito embora estejamos seguros de que o sofrimento pode significativamente ser reduzido.

Dramatizamos descomunalmente o que se passa. Sem agregar soluções, vemos apenas os problemas, necessitamos de ideias novas de pensamento e ação, porém persistimos nos deleitando no vai e vem do culto à dor, reforçando a impotência, o sentimento de culpa, ficando congelados, inativos, perdidos na distração. Embora utopicamente, sairemos deste “round” sentindo-nos finalmente responsáveis justamente por este caos coletivo. Para compreender que somos uma unidade. Portanto, tudo afeta a todos.

O equilíbrio que por vezes buscam certas forças ou tendências ocidentais que se adaptaram à vida do oriente e outras, conhecido como o “new age” que nos vende um perfeito “nirvana”, o mindfulness, através de primeiros auxílios psicológicos, de forma instantânea, para resolver uma memória arcaica não necessita de mais que uma vida para poder ser gigante, não corresponde à nossa realidade ocidental, nem à própria realidade, são as armas que utilizam os abutres do consumo, os falsos profetas, os centros de louvação, os supostos eleitos, para continuar manipulando e divertindo o ser para este se desvie do caminho de busca da essência de si mesmo.

Em meio a toda essa fermentação coletiva, algo parecida com um termômetro de mercúrio, que vai para todo lado… existe algo que é muito belo, nos referimos à “poesia”, essa magia envolta de AMOR que nos permite criar uma ponte entre nós e a realidade, uma “realidade paralela”, como já aqui mencionamos. Vivemos em meio a várias dimensões (seis, oito, nove!) ao mesmo tempo, porém não podemos vê-las, nós as perdemos, porque temos que nos focalizar somente na realidade cotidiana, o dinheiro, pagar, pagar, pagar, comprar, comprar, encher-nos de lixo cada vez mais para nos envolvermos seja de graxa ou de baboseiras inúteis e assim não aceitar o quanto que somos pequenos e solitários. Aceleradamente nos deixamos adoecer como leprosos do espírito, criando mais e mais angústia para refleti-la no inconsciente coletivo, produzindo mais desajustes emocionais. Uma era de culto à mediocridade, mediocridade na educação, na saúde, na política, mediocridade espiritual, MEDIOCRIDADE, MEDIOCRIDADE.

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Cada pessoa, de um modo individual, constrói o necessário e para bom desenvolvimento individual, e ótimo coletivo. Em relação ao tema da “construção”, Floriano, que pões sobre o tapete, nos parece que se presta a muitas divagações e respostas.

Até onde se dirige a humanidade? Para seu próprio encontro, haja o que houver; contudo, se cruzamos os braços e deixamos que continue a “fanfarrice”, de “arquétipos” desgastados e obsoletos, políticos, sociais e culturais, não cabe dúvida que marcharemos inexoravelmente para a autodestruição, e que talvez tenhamos mesmo o privilégio de “vivê-lo”.

Em síntese, nada mudou desde a guerra de 1914, quando nasce Dada, com os acontecimento destes dias. A diferença está em que agora as nações contam com armas de destruição em massa. Que há muito tempo o ser humano vem se deteriorando através de táticas psicológicas e de eliminação atraentes. Porém é curioso, considerando que ao mesmo tempo temos a capacidade pública de conhecimento sobre as forças interiores mais amplamente do que no início do século XX.

Podemos dar volta ao tema e trazê-lo para a exposição As chaves do desejo, dizer, mais do que construir, que curioso!, o que é que reúne a toda esta gente, em momentos de tanta controvérsia?

O Surrealismo é um movimento que nasceu em guerra e se manifesta com grandeza no mundo de um modo mágico. Geralmente em momentos de conflito. Porém alguma vez a humanidade saiu do conflito?

Neste momento há uma grande embrulhada global (guerra santa, migrações) e os surrealistas nos manifestamos reunindo as obras de artistas de 23 países. Mais do que perguntar o que construímos, cremos que deveríamos indagar o que é que nos une, o que faz com que nos encontremos através dos diferentes países, sem fronteiras, sem alfândegas, sem seguros, em meio às chamas, ou a diversos fenômenos…

Recordemos quando Enrique de Santiago organizou Umbral Secreto, no Chile: as boas vindas para a mostra surrealista foi um terremoto de grande intensidade.

Os surrealistas em meio de um fenômeno telúrico, e todos ilesos!

É curioso, nos parece, com respeito, que a pergunta seria conveniente redigi-la neste sentido.

FM | Creem, ambos, como defendia Aldo Pellegrini, que o homem e a realidade são dois processos que transcorrem em paralelo, de algum modo destinados à impossibilidade de um encontro?

AG & AP | Se comungamos com o pensamento de Aldo – que deixou uma série muito importante de testemunhos e documentos sobre o Surrealismo -, encontramos muita correspondência com a pergunta. O homem e a realidade são dois processos separados, porém conjugados em uma “realidade paralela”, e a “impossibilidade de um encontro” soa como algo poético e o processo se torna efetivo na realidade paralela.

Há que tomar em conta que Pellegrini possuía um espírito libertário e crítico, e comungava com a “explosão interior do espírito” proclamada e exaltada pelos surrealistas e em especial por Antonin Artaud.

Aldo construiu um mundo à parte, uma espécie de realidade paralela, na qual estavam acoplados seus amigos do grupo surrealista argentino. E esteve em oposição com os “símbolos acomodados no sistema”, como eram Borges e Bioy Casares, que zombavam das propostas e do pensamento que proclamava Aldo; e a resposta de Pellegrini era projetar uma série de sinais luminosos e libertários desde as páginas de suas revistas surrealistas que ignoravam e questionavam esses fazedores de literatura argentina.

Pellegrini indagou em todas as formas da realidade: “o absurdo”, “o mágico”, “o irreal”, e conformou um pensamento de vanguarda e clareza, que muitas vezes estava em oposição ao Surrealismo dogmático.

Aldo explorou todas essas possibilidades para imaginar e confirmar que são dois processos e é justamente nessa “realidade paralela” onde se permite observar uma riqueza de pensamento, uma herança em plena efervescência.

Aldo Pellegrini, e seu grupos surrealista, marcaram um caminho muito importante no desenvolvimento do Surrealismo americano, mais vital, mágico e ancestral.

Desejamos sublinhar que é muito importante estudar Aldo Pellegrini e que sua obra merece uma releitura e redescoberta permanente de todos nós.

FM | Quais outros planos os dois alimentam seguir trabalhando após essa mostra?

AG & AP | Flor, se sairmos com vida desta mostra e conseguirmos não nos afogar nesse mar tormentoso, porque vamos nadando contracorrente como toda manifestação surrealista, e se o “caleuche” não colapsa, quem sabe nos animemos, no futuro, a “sonhar” com uma mostra de automatismo coletivo.

FM | Esquecemos algo?

AG & AP | Que brindemos com as taças entrelaçadas, como diz Roberto Juarroz, porque em cima e em baixo é tudo igual! E nos vemos em Cartago, 2016. Auu Auuuuuuuuuuuu!!!!!

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