Por Floriano Martins
NOTA DE EDIÇÃO: Partes 1 e 3 deste dossiê foram originalmente escritas para o suplemento Sábado, do jornal O Povo (Ceará), respectivamente em 1998 e 1999. A parte intermediária é uma entrevista realizada em 1994 e incluída no livro Escritura conquistada – Diálogos com poetas latino-americanos (Fortaleza: Letra & Música Comunicação, 1998). Ivan Junqueira (Rio de Janeiro, 1934-2014), traduziu a obra de autores como Charles Baudelaire e T. S. Eliot. Igualmente poeta e ensaísta, com extensa bibliografia nas duas áreas, foi presidente da Academia Brasileira de Letras e nos anos 1990 dirigiu a revista Piracema, da FUNARTE, uma das mais consistentes revistas de cultura deste país.
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1.
Indagado pela jornalista Denira Rozário sobre o estopim da poesia, responde Ivan Junqueira que “a origem de um poema está sempre vinculada, de alguma maneira, a uma matéria da memória”. Em função disto recordo observação de Milan Kundera em torno do equívoco que é buscar atitude – qualquer que seja sua ordem – em uma obra de criação, quando ali se deve procurar justamente o envolvimento com uma aprendizagem, com um sentido primeiro da compreensão, do mergulho no universo do desconhecido, única viagem que nos faculta o conhecimento da beleza. O conhecimento evocado pela poesia é exatamente o da matéria espiritual. Neste sentido irmanam-se poesia e filosofia: a riqueza da chama que ilumina e desvela os meandros de uma geometria do espírito, de um lado; as escavações no horizonte do imponderável, de outro. Uma mesma raiz definida pelo fogo ostensivo da beleza, mescla de visão e recolhimento, de expansão e esvaziamento. Compreende a poesia a irredutibilidade nas relações entre beleza e vazio. E o compreende justamente por buscar o centro, o magma de toda grandeza e vulnerabilidade da experiência humana. Melhor: por existir justamente a partir dessa busca. Digo existir e não realizar-se, uma vez que, definindo-se como linguagem, só pode realizar-se a partir de sua compreensão como tal, ou seja, a partir de sua definição como objeto, construção, matéria. Aí reside, em grande parte, a confusão reinante no universo de entendimento da ação do poeta, que tanto nos aclara Kundera em diversas ocasiões de seu Os testamentos traídos. Age portanto a linguagem e não a intenção do poeta, sua atitude.
Uma paginada geral em qualquer seleta de poesia brasileira contemporânea nos leva a situações que se movem de maneiras as mais desconexas dentro do que acima mencionamos. Estivéssemos fazendo um balanço dos anos 1960 identificaríamos com mais brevidade o raio de ação das correntes envolvidas: de um lado a supremacia do poder estabelecido pelo Concretismo, segundo expedientes programáticos corriqueiros; de outro o recolhimento em si de uma resistência surrealista que não ousou o suficiente, sequer no plano de uma denúncia mais austera, para desbancar as articulações do trio Noigandres. Logo em seguida identificamos com muita facilidade a demência underground da chamada geração mimeógrafo. Nenhuma herança literária – exceto parcialmente pela poesia de Ana Cristina César –, por mais que tenham empunhado suas penas favoravelmente a alguns nomes desta geração críticos como Heloísa Buarque de Hollanda, Carlos Alberto Messeder Pereira e José Guilherme Merquior.
Desde então vivemos uma época obcecada pela produção do genuíno em escala vertiginosa, a palavra convertida em slogan sensacionalista. Ascende a mediocridade, em tal circunstância, à categoria de “esplendor artificial”, como bem o definiu George Steiner. Há evidências indiscutíveis de um severo e sigiloso programa de silenciamento da expressão criativa do artista em nosso tempo. Trata-se de uma visão acentuadamente centralizadora, coercitiva, de usufruto do poder a partir do cerceamento da ação do outro. Trata-se, claro está, de uma recusa violenta – por mais que a disfarcem os meios de comunicação, principais beneficiários de tal situação – da diferença entre os homens, da raiz de nossa própria existência no mundo. Bem sabemos que a aparente multiplicidade de escolhas que nos colocam as sociedades contemporâneas – sobretudo em países como o nosso – articula-se em uma teia estratégica de evasivas, ardil calculado que engendra um esvaziamento da escolha individual. Não há poesia determinada por esse ou aquele parâmetro exterior a seu próprio magma incandescente. Através da criação o homem determina sua própria existência, ao definir a extraterritorialidade de uma aventura que, embora tenha raízes essencialmente pessoais, inscreve-se na necessidade vital de ser compartilhada por todos.
Disse acima não haver herança deixada pela denominada geração mimeógrafo. Claro está que me refiro a poetas que assumiram, de uma ou de outra maneira, o compromisso estético – se assim podemos falar – que caracterizou tal geração. Aqui me valho de uma lúcida avaliação de Sérgio Campos, ao situar que, “nestes tempos de subcultura, os apóstolos dos chamados novos tempos têm primado por dar ao poema a maior sujidade, relaxamento formal e desmazelo de escrita possível”, concluindo que “pretendem com isso decretar a morte histórica (ou estética) da poesia em sua acepção clássica, a começar pela agressão à palavra, levada ao paroxismo”. De uma maneira geral, como já afirmei em várias ocasiões, o grande contributo da poesia brasileira vem exatamente daqueles poetas que não atrelaram seu nome a nenhuma circunstância de turno. Entre eles, destaca-se uma das vozes mais autênticas de nossa poesia, o carioca Ivan Junqueira.
Toda grande criação traz implícita uma irredutível defesa da memória e seus atributos, razão que tem levado alguns poetas a afirmarem a primazia absoluta do caráter autobiográfico da poesia. A este respeito, disse o poeta argentino Enrique Molina que “a biografia do poeta está em seus textos”. Na verdade a palavra poética orienta-se basicamente a partir dos espaços preenchidos pela memória. Define-se como que à espreita da revelação desses espaços, contribuindo fundamentalmente para a iluminação de suas vastidões obscuras. Neste percurso não há verdade inviolável, e nele o que descobre o poeta é exatamente a vulnerabilidade de toda presença, vulnerabilidade física de tudo quanto se mostra escondido em si mesmo, no aguardo de firmar sua verdade interior. Cabe ao poeta então descobrir a “respiração vital” (María Zambrano) de todos os ímpetos de sua memória, de maneira a fundir palavra e existência, ser e vida. Tudo isto que afirmo nos parece uma grande lição adquirida da leitura da poesia de Ivan Junqueira. Muito além de seu “obstinado rigor vocabular” (Per Johns) ou de seu domínio “magnificente da arte de fazer poemas” (Moacyr Félix), fascina o leitor uma outra virtude deste imenso poeta: a severa relação que mantém com sua memória, escutando-lhe sem a ela ceder, ambicionando seus vestígios mais secretos ao mesmo tempo em que cuidando para que a mesma não se torne exuberante em seus excessos. Diálogo primordial portanto em momento algum dissipado pelo devaneio ou por algum acesso de conspurcação retórica.
Ao prologar o mais recente livro de Ivan Junqueira, A sagração dos ossos (1994), acerta Antônio Carlos Secchin ao iniciar afirmando que o mesmo se ocupa do universo das “perdas e dissipações”, alertando ainda que este livro “representa a culminância de temas e formas obsessivamente trabalhados ao longo de mais de trinta anos de exercício criador”. Esta ambientação parece ser o centro da poética de Ivan Junqueira, inalienável medula, ao preservar em si uma serenidade perfeita. Há uma infinidade de tratamento a ser dada a esse recurso – o da poesia como um inventário das perdas –, marcada pelo ritmo interior de cada diálogo com o vazio e suas possibilidades de existência. Diz bem o poeta, embora transpondo tal imagem como característica de um grifo, que o que lhe inebria é “sua vertigem de estar só consigo, / sua aposta no absurdo e no infinito, / seu dom de amor, sua esperança mítica / de regressar um dia ao paraíso”. Portanto, seu relicário de perdas o conduz tão-somente a uma obsessão pessoal: regressar a um estado de ânimo suspenso, território em que não pode agir o terror supremo da perda. O grande desafio da poesia de Ivan Junqueira não radica exatamente no exorcismo da cadeia de efeitos provocados pelas perdas, e sim no combate direto com as forças que tornam o homem póstumo de si mesmo. Toda a sua poesia repete, não como flâmula proverbial mas antes como verdade substancial, o verso final deste seu A sagração dos ossos: “a vida é maior que a morte”.
Naturalmente o que observo não põe em discussão a avaliação que faz da poesia de Ivan Junqueira o crítico Antônio Carlos Secchin, bem ao contrário, busca fortalecê-la ainda mais, sendo bastante atentarmos para o que este tão bem define, ao argumentar a favor da total inexistência de hermetismo no poeta: “há, isto sim, uma densidade especulativa refratária a reduções maniqueístas, na trilha de uma ‘lírica do pensamento’ de escasso cultivo entre nós”. O olhar do poeta sinaliza a existência da vida, ao mesmo tempo que desperta toda consciência adormecida. Compreende a multiplicidade que encarnam a verdade e a beleza, a configuração de sua representação no mundo, o sentido último de entrega a que está predestinado. Em síntese, a poesia é uma grande taça da dor, que é também o esplendor do coração. Ambientação filosófica, e não somente o território evasivo de um rigor formal, não há sortilégio ou fundamento fenomenológico que garanta sua existência alheia à concreção do diálogo entre o homem e sua sombra, entre ser e vida, entre o presente e a vertigem irredutível de sua memória.
Poucos poetas no Brasil encarnam com tamanha veemência poética o que Antônio Carlos Secchin situa como uma “lírica do pensamento”. Lugar onde a linguagem fica em suspenso, detida em sábio aguardo da manifestação da memória. Ali a poesia age em prol de seu sentido primordial de religare, território onde todas as perdas convertem-se em ganhos, onde a palavra corresponde à verdade do ser. Não importa tratemos de Alfonso El Sábio, William Blake ou Ivan Junqueira. Não há retórica que invada o sentido de reimersão permanente da poesia em seu ciclo infinito de formação. Através da memória não busca a poesia senão sua experiência extrema, recordando com Sérgio Campos que “a palavra é o ser da poesia” – não uma experiência formal, mas sim da forma, a maneira da plenitude agir sobre o informe. Essência do ser, essência da poesia. Neste sentido, nenhum outro poeta no Brasil foi tão longe quanto Ivan Junqueira.
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2.
FM | Transgredir a linguagem significa postular um universo verbal capaz de fundamentar uma linguagem outra. Paixão absoluta (entrega vertiginosa) e também crítica da realidade (exercício permanente de lucidez), a poesia ambiciona a linguagem que integre homem e mundo. Acaso te sentes, a exemplo de Blake e Girondo, criador de uma linguagem? O que ambiciona tua poesia?
IJ Penso que, em certo sentido, qualquer poeta autêntico, por menor que seja, sempre cria uma linguagem, ainda que não a transgrida, ou melhor, não transgrida o sistema da língua. E cabe aqui uma observação de José Guilherme Merquior a que sempre recorro nos casos em que a transgressão dessa linguagem conduz apenas ao metaludismo, como ocorre, por exemplo, com a poesia concreta. Diz Merquior, com muita argúcia e lucidez, que “a literatura, à diferença das outras artes, tem por matéria-prima não uma realidade a que, eventualmente, se empreste um sentido simbólico […] mas sim uma realidade que já é, em si mesma, um sistema simbólico: a linguagem”. Esse mesmo impasse foi denunciado por Antônio Houaiss quando, ao comentar os riscos da aventura concretista, assinalou que os integrantes dessa corrente haviam reduzido a palavra a um “signo cadavericamente linguístico”, pois o despojaram de toda a sua carga semântica e, o que é pior, de todas as suas articulações contextuais dentro do discurso. Quando um poeta como Dylan Thomas, por exemplo, se insurge contra a linguagem convencional, cumpre observar que não o faz com o objetivo de destruir o sistema da língua inglesa, mas apenas de transgredir a linguagem sempre que esse sistema, por sua rigidez e passividade, põe em risco o vigor e a legitimidade da expressão poética. Em suma, Thomas em nenhum momento destrói a língua: simplesmente tenta transcender os limites racionais do sistema linguístico. Daí, talvez, o hermetismo de sua retórica, que não constitui nenhum maneirismo, como chegaram a supor alguns, mas sim uma necessidade expressiva. E foi isso o que fizeram quase todos os grandes poetas, sobretudo aqueles a que Pound chama de “inventores”, embora tal conceito implique um verdadeiro cortejo de contradições. Por outro lado, cabe registrar aqui que não se pode, a todo instante, tentar uma reinvenção da língua. Ao analisar as propostas “revolucionárias” de Milton com relação à língua inglesa, Eliot situou com muita lucidez esse problema. Diz ele em De poesia e poetas: “Se cada geração de poetas assumisse o compromisso de atualizar a dicção poética relativamente à linguagem falada, a poesia fracassaria no que se refere a um de seus mais importantes deveres. É que a poesia deveria não apenas ajudar a purificar a língua da época, mas também a evitar que ela se transforme muito rapidamente: um desenvolvimento demasiado rápido da língua poderia constituir um desenvolvimento no sentido de uma gradual deterioração, e é esse o risco que corremos hoje em dia”. Apesar de todas essas ressalvas e reservas, que julgo de todo cabíveis, considero que minha poesia, pelo menos até onde modestamente o pretendi, instaura uma linguagem nova, nova porque minha, e minha porque se valeu das experiências e conquistas de todos aqueles que me antecederam. É por isso que, ao contrário do que postula Pound, não basta “make it new”: é preciso também, em certa medida, “make it old”, pois não há modernidade se não se recorre à lição do passado. Lembro aqui, inclusive, que esse afã de originalidade que atormenta nossos poetas jovens foi algo que nasceu com o romantismo, em decorrência daquele eu amiúde psicótico a cujo cultivo se entregaram todos os poetas da época. E nem preciso recordar que, na época de Virgílio, o que ocorria era justamente o oposto, ou seja, a busca de uma língua comum que atendesse às exigências impostas pela maturidade não apenas de uma língua, mas também de uma cultura e uma civilização: a romana. É esse afã pelo novo (um novo que, ao tornar-se novo, começa a envelhecer) que domina a esmagadora maioria dos jovens poetas brasileiros, os quais se transformam em frutos enfezados e raquíticos de uma vanguarda que é, acima de tudo, autofágica e epigônica. Se poetas como Bandeira, Drummond ou Dante Milano são os mais altos de nossa literatura, cabe dizer aqui que só ostentam essa condição porque, à parte seu talento pessoal, foram poeticamente os mais cultos. A propósito, não sei de nenhum grande poeta de qualquer língua que não fosse poeticamente culto, ou seja, que não conhecesse a fundo seu ofício e os segredos de seu idioma. Quanto àquilo a que ambiciona minha poesia, digo apenas que a entendo como a mais venturosa e enigmática forma de conhecimento que me foi dado encontrar. E digo isso porque, nos primórdios de minha formação intelectual, tentei apreender esse mesmo conhecimento através da ciência e da filosofia, que se revelaram caducas e contingentes quanto ao conhecimento que tentei obter, ou seja, um conhecimento que jamais poderia ser assimilado dentro dos limites do discurso lógico ou do entendimento racional. Daí ter abandonado em meio os cursos de medicina e de filosofia que iniciei. Somente a linguagem metalógica e encantatória da poesia pode integrar o homem e o mundo. E é isso o que pretendo como poeta.
FM | Em um estudo sobre Borges, o crítico Guillermo Sucre traça paralelo entre o que chama de literatura expressiva (“supõe a coerência de um mundo já dado e o poder, também prévio, de traduzi-lo em palavras”) e literatura alusiva (“interna-se por um caminho oblíquo: se afirma algo é interrogando”). Deve a literatura buscar a expressão ou a alusão?
IJ Não sei exatamente o que deve buscar a literatura, se a expressão ou a alusão. Até certo ponto, haveremos de convir que, do ponto de vista artístico, tudo é expressão. A distinção de Guillermo Sucre me parece algo tautológica e mesmo acadêmica, já que, ainda que não os suponhamos, há sempre “a coerência de um mundo já dado e o poder, também prévio, de traduzi-lo em palavras”. E tanto essa coerência quanto esse poder tradutório independem de nós. Eles simplesmente existem, quer em latência, quer em ato. A realidade não precisa de nós. Mas entendo o que Sucre quis dizer, e decerto com “literatura expressiva” não pretendeu referir-se a nenhuma tendência expressionista, pois esta implicaria, não uma simples tradução, mas uma deformação da realidade. Entendida assim a distinção, devo dizer que minha poesia sempre tendeu à alusão, como ocorre em qualquer método mítico de produção literária ou de apreensão da realidade. Se examinarmos toda a poesia que escrevi de 1956 a 1985 com um mínimo de detecção e argúcia, chegaremos à conclusão cabal do que acima afirmei. Em A rainha arcaica (1980), que recolhe seletivamente tudo o que até então escrevi, esse “caminho oblíquo” de dizer as coisas está comprovado pelo uso insistente dos parênteses, o que foi muito bem observado por Gilberto Mendonça Teles no prefácio. É como se fosse uma terceira voz que se intromete, sempre oblíqua, entre o que eu digo e o que diz o meu duplo. E essa voz não raro interroga, pois é ela que, cartesianamente ou não, instaura o princípio da dúvida, pouco importa aqui se sistemática ou metódica. Já em O grifo (1987) o tom afirmativo domina a pulsação dubitativa, mas nem por isso meu discurso renuncia àquele vezo oblíquo e, consequentemente, ao comportamento alusivo. Daí um crítico, Nogueira Moutinho, ter afirmado certa vez que eu não entalhava gravuras, mas debuxava fusains destinados antes a sugerir do que a afirmar. Prefiro sempre essa via oblíqua, a que chamaria mesmo de socrática, por julgar que a realidade que nos cerca é sempre movediça e reticente, não raro mesmo ilusória, não cabendo assim ao artista comprometer-se com afirmações definitivas ou concludentes a respeito disso ou daquilo. E devo dizer que tal procedimento deve muito àquilo que, em minha fase de formação, aprendi com os fragmentos de Heráclito de Éfeso, numa época em que a filosofia não havia ainda sido poluída pelo conceito. É nesse sentido, ou seja, dentro do âmbito do paralelismo traçado por Sucre, que entendo a linguagem poética como permanente alusão, como forma oblíqua de compreender uma realidade que nunca se dá por inteira e que, mesmo transparente, é também oblíqua.
FM | Em entrevista que fiz ao crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón, ele salienta que um dos aspectos mais essenciais da crítica é o de alertar sobre os limites a que pode haver chegado determinada produção literária. “Território de comunhão, de encontro e de reconhecimento comum”, assim conclui Padrón suas reflexões. Qual te parece ser a tarefa básica da crítica literária? Para que serve a crítica?
IJ A crítica literária, pelo menos como a entendo, é uma forma de criação paralela. Se não o for, não será crítica, mas simples exercício de vivissecção cadavérica. É nesse sentido que a crítica universitária se resume amiúde num desastre e, não raro, em pedantaria erudita. Pode-se, por exemplo, se dispusermos de um mínimo aparato exegético, desmontar qualquer poema peça por peça, assim como se desmonta o mecanismo de um relógio. Mas de que vale tudo isso se, ao fazê-lo, estamos destruindo todas as misteriosas articulações de que vive e se ilumina esse mesmo poema? A tarefa básica da crítica é menos judicativa do que empática. Daí minha repulsa à crítica dita hermenêutica, que, em seu furor analítico, não consegue ir além da franja das palavras. Sempre que posso, aliás, alerto nossos críticos para essa forma arrogante de insânia, isto é, a de quererem se interpor entre o leitor e a obra. E lembro a propósito o grande Dámaso Alonso quando adverte: “Que nada se interponha entre o leitor e a obra!” A crítica deve ser um ato de empatia e compreensão, pois, caso contrário, jamais poderemos entender como se escreveu uma poesia que não é a nossa. E nada supera o prazer de alcançar esse nível de entendimento, sobretudo quando maiores são as diferenças entre a nossa própria obra e a alheia. Posto isto, digo que a crítica serve justamente para consolidar aquele “território de comunhão, de encontro e de reconhecimento comum” a que se refere Padrón. É preciso acabar, de uma vez por todas, com essa falsa e lamentável noção de que a crítica deve demolir o que supostamente não presta, mesmo porque o que não presta, se não presta, já está previamente demolido. É bem de ver que a função da crítica não se resume à judicatura hermenêutica do que é bom ou do que é ruim, e cumpre aqui lembrar que, em matéria de gosto estético, as apreciações valorativas variam muito de leitor para leitor e, o que é mais grave, de crítico para crítico. Isto não quer dizer, todavia, que o crítico deve eximir-se quanto à denúncia das chamadas fraudes literárias ou de certas glórias que se edificam à sombra sabe-se lá de que juízos subjetivos ou efêmeras circunstâncias. É nesse sentido que endosso um crítico como Wilson Martins quando investe contra o sucesso literário de escritores como Jorge Amado ou o alcance filosófico de “pensadores” como Alceu Amoroso Lima, dois monstruosos equívocos de nossa literatura. Serve assim a crítica para despertar no leitor o interesse por essa ou aquela obra, mas nunca para induzi-lo a partilhar da opinião do crítico. O leitor é partícipe da criação literária, e somente seu esforço, aliado à sua imaginação, poderá levá-lo a fruir plenamente do texto que está lendo. É por isso que um crítico da envergadura de Franklin de Oliveira alude sempre àquilo que chama de “estética da leitura”. Em suma, o crítico, quando muito, poderá prestar uma vaga consultoria no que se refere àquele “plaisir du texte” de que tanto nos fala Roland Barthes. E esse mesmo crítico, por mais arguto e sedutor que seja, não tem jamais o direito de estragar o prazer do leitor.
FM | Que diálogo secreto mantém a tua poesia com a de Eliot, Baudelaire e Dylan Thomas, tendo em conta a intimidade prolongada por teu notável exercício tradutório destes poetas? Em tal jogo de espelhos o que poderíamos apontar como traços convergentes?
IJ Não há dúvida, é claro, de que com todos eles, sobretudo com os dois primeiros, se estabeleceu um longo e proveitoso diálogo secreto. No caso de Eliot e de Baudelaire, aliás, esse diálogo já existia muito antes da tradução, pois foram ambos poetas de formação e de eleição. A admiração por Thomas é mais tardia e confesso aqui, sem nenhum pejo, que, à época da tradução de seus poemas, meu conhecimento dos mesmos era apenas fragmentário. Mas Thomas, como Baudelaire, é a própria encarnação daquilo a que poderíamos chamar, como o faz o poeta e ensaísta francês Pierre Emmanuel, de o mito do poeta moderno, daí serem ambos, aliás, tão populares, não obstante a extrema dificuldade de compreensão que envolvem. Thomas foi para mim um desafio maior, pois sua poesia, ao contrário das de Eliot e de Baudelaire, implica consideráveis complexidades que se situam no cerne da língua e no nível da própria leitura. Os traços convergentes, no caso de Thomas, não são tão profundos como nos de Eliot e Baudelaire. Thomas foi um retórico genial, um herdeiro de Blake e Milton, uma espécie de reflexo tardio da “metaphisical poetry” do século XVII. Essa vertente retórica dylaniana compromete um pouco meu diálogo secreto com o poeta galês, pois a poesia que sempre cultivei está intimamente relacionada a uma forte preocupação de austeridade e economia expressivas, em tudo distinta dos ritmos bíblicos e da féerie imagístico-metafórica de Thomas. Mas admiro-o justamente por isso, por ter ele se consagrado a uma poesia que jamais pratiquei. O diálogo com Eliot e Baudelaire é muito mais íntimo, pois envolve práticas e preocupações poéticas que sempre me foram muito caras, como as do intertextualismo, da música de ideias, do rigor formal e do resgate de toda uma tradição que por pouco não se perdeu. E me impressiona muito como conseguiram ambos se manter emocionados dentro de estruturas formais tão rigorosas. Eliot e Baudelaire, tanto quanto Fernando Pessoa, me ensinaram como poucos esse milagre que consiste em fazer com que o pensamento se emocione e a emoção pense, exatamente como o conseguiram Donne e outros poetas metafísicos ingleses. E há em ambos uma preocupação espiritual que sempre me seduziu, além do tácito compromisso que assumiram com o caráter solene e iniciático da poesia, como se vê nos poemas de Hölderlin, Novalis, Jorge Guillén ou Jorge Manrique. E destaco enfim, na arte tradutória, um outro diálogo secreto: o que se estabelece com a crítica, pois traduzir é também uma forma de criticar as poéticas que se praticaram antes de nós. É por causa desse convívio que se instaura entre aquele que traduz e o autor traduzido que aconselho aos meus pares só traduzir poetas com os quais mantenham uma intensa afinidade espiritual. No caso de Eliot, por exemplo, essa afinidade tangencia amiúde formas exaltadas de uma intimidade quase absoluta.
FM | O poeta argentino Nestor Perlongher dizia-se perplexo pelo fato do Brasil contar com uma notável fonte de êxtases, como ele considera o candomblé e, no entanto, seus escritores produzirem obra tão acadêmica, tão árida. Por outro lado, Wright Mills já colocou que “a verdadeira traição dos intelectuais do Ocidente funda-se na burocratização da cultura”. Eu me pergunto até que ponto ambos aspectos encontram-se interligados no tocante à literatura brasileira. Somos, de fato, alheios a esta paixão absoluta a que me refiro logo no início desta nossa conversa, ou temos uma tradição que vem sendo brutal e sistematicamente deformada?
IJ Antes de mais nada, e já que se pede aqui uma opinião pessoal, devo dizer que manifestações como o candomblé não me induzem a qualquer tipo de êxtase. Toda essa exaltação que se faz de nossa cultura popular, aliás, me enche de enfado e mesmo de irritação, já que essa maneira de colocar as coisas leva ao equívoco de supervalorizar a influência que exerceram a cultura negra e indígena sobre a formação da sociedade brasileira. É bom lembrar aqui que fomos colonizados por europeus, ainda que da pior espécie, e que nossas raízes, como de resto as de toda a América Latina, são europeias: portuguesas, espanholas, francesas, holandesas, alemãs, inglesas. E foram essas tradições, essas ideias e esses valores que nos geraram, nos criaram, nos enriqueceram, até sermos o que hoje somos. O que herdamos no âmbito cultural não nos veio dos guaranis nem dos africanos, mas dos europeus, a começar pela língua, que é portuguesa, e não sem razão toda a América Hispânica fala uma única língua, o castelhano. Caso contrário, nós, brasileiros, estaríamos falando tupi-guarani (como chegou a pretender Oswald de Andrade, aliás) ou qualquer dialeto nagô. Nossos valores culturais são também europeus (e, mais remotamente, latinos), como europeus, em suas trágicas origens, foram também nossos costumes calcados na transigência e na tolerância. E europeia é, ainda, a religião que prevalece no país. Não pretendo aqui negar a influência da cultura negra, mas o fato é que ela se restringe a áreas diminutas de nosso território intelectual. Quanto à influência indígena, praticamente inexiste. Incluir o candomblé como “notável fonte de êxtases” é desconhecer a alma da sociedade brasileira. Por outro lado, ao considerar acadêmica e árida a obra dos escritores brasileiros, como o faz o poeta argentino Nestor Perlongher, equivale a passar um atestado de ignorância com relação a tudo o que aqui se produziu. Serão áridos e acadêmicos escritores como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade ou João Cabral de Melo Neto, para citarmos apenas estes? A burocratização da cultura ocorre em qualquer país, em maior ou menor grau, nessa ou naquela época. Não é privilégio nosso. Não acredito que sejamos de modo algum alheios àquela paixão absoluta a que você se refere, mas há entre nós algo que deve ser denunciado: somos uma nação sem paideia, uma sociedade que, ao considerar a cultura um luxo e seu patrimônio artístico um dado sem importância, perdeu a sua fisionomia e comprometeu sua própria identidade. Há obras fundamentais e acessíveis sobre esse crime hediondo, como A morte da memória nacional, de Franklin de Oliveira, ou o recente O teatro dos vícios: transgressão e transigência, de Emanuel Araújo, que mergulham a fundo em nosso passado histórico e explicam por que somos hoje o que somos. Mas quem as lê? Ou quem se interessa por esse trágico problema? Nossos bens culturais – que, a rigor, são bens de consumo – jamais foram preservados ou estimados. Não temos hoje sequer um projeto de nação. E na verdade não somos uma nação, mas uma cubata. Além de possuirmos uma tradição muito jovem, que teria no máximo três séculos e que não pode ser comparada com a dos países europeus, cuja cultura já se estratificou, nada mais fazemos do que vilipendiar essa mesma tradição, a qual só poderia florescer se bem cuidada e bem nutrida. É a essa situação que atribuo a nossa carência de êxtases. Uma nação que não cuida de sua infância (e, consequentemente, de seu futuro) não pode cogitar de grandezas. Talvez sequer de suas próprias misérias. Somos um país que nunca ouviu falar daquele homem a que se referia Pico de la Mirandola em sua Oratio de homminis dignitate: “Não te fiz celeste nem terrestre, mortal ou imortal, a fim de que tu mesmo, livremente, à maneira de um bom pintor ou de um hábil escultor, descubras tua própria forma…”. É claro que, nessas circunstâncias, nossos escritores correm mesmo sério risco de se tornarem áridos e acadêmicos, mas não porque sejam incapazes de se extasiar diante do candomblé.
FM | Falemos um pouco sobre Oswald de Andrade. Aclamado pelo Concretismo como seu precursor, a ele te referes como “um autor cuja importância nos parece hoje extremamente controversa”. Quais as contradições com que nos deparamos ao avaliarmos hoje as influências do mito Oswald de Andrade em nossa literatura?
IJ Não creio que Oswald de Andrade haja alcançado o status de mito em nossa literatura. Sua condição, ao meu ver, é bem mais modesta e subalterna. Não nego as influências que decerto exerceu, não sobre nossa literatura como um todo, mas em determinado momento da poesia modernista, sobretudo através da técnica da fragmentação do discurso ou da ênfase nos aspectos visuais do verso e das imagens. Isso se explica em parte porque, à época do movimento modernista, o cinema começa a ser reconhecido como arte, a sétima arte, e se aceleravam então os processos de comunicação da mídia. Todas as atividades que envolviam a palavra e a imagem, aliás, ganhavam velocidade e concisão. Era a época da síncope, do espasmo, do corte. E Oswald transplantou exemplarmente essas técnicas não apenas para a poesia, mas também – e talvez com maior êxito – para a prosa. Mas sua contribuição ao modernismo – ou, mais precisamente, à modernidade – pára por aí. As contradições oswaldianas são, grosso modo, as mesmas de todo o modernismo, e tudo isso acaba de ser magistralmente analisado por Franklin de Oliveira em A Semana de Arte Moderna na contramão da história e outros ensaios (1993). Eu mesmo tento semelhante análise do modernismo numa das seções, “O modernismo e seus herdeiros”, de meu próximo volume de ensaios, O signo e a sibila, que deverá ser lançado em agosto ou setembro deste ano. Oswald arma-se de revolucionário, mas não passa de um pequeno-burguês conservador, como de resto quase todos os seus pares. Proclama uma antropofagia nacionalista que, a rigor, tangencia as teses fascistas. Condena a importação de modelos que se fazia durante o parnasianismo, mas importa excrescências estéticas do quilate de Marinetti e Tristan Tzara. E aqui cabe este registro: Oswald jamais indicava suas fontes, às quais, é bom lembrar, não ia, o que leva Franklin de Oliveira a observar: “Todo mau poeta é mau pensador”. Fala ainda de certo messianismo na filosofia e, no entanto, se revela quase indigente no que toca ao conhecimento filosófico mais basal. E essa foi, aliás, uma das mais graves carências do modernismo: faltava-lhe fundamentação filosófica, como muito bem observa Amadeu Amaral. Apregoa uma revolução que nada tem a ver com os anseios populares e que, no fundo, era financiada pelos grandes empresários e industriais paulistas, razão pela qual o modernismo é um movimento essencialmente elitista e conservador. Já lhe ocorreu, meu caro Floriano, a possibilidade de uma Semana de Arte Moderna em Teresina? Mas Oswald de Andrade tem pelo menos uma desculpa: aqueles que hoje o glorificam, sabe-se lá exatamente por quê, o apresentam sempre como alguém que ele não foi e sequer imaginou sê-lo. Foi artesão habilidoso, e só, mas o exibem como poeta notável, o que de modo algum chegou a ser. Foi dramaturgo irremediavelmente datado, e o aclamam como prógono do moderno teatro brasileiro, desse teatro que só se tornou teatro com Nelson Rodrigues. E finalmente se esquecem do melhor que Oswald nos legou como escritor: sua prosa. Oswald, como Mário de Andrade – mas este, além de conhecimento artístico e talento polimórfico, tinha dignidade literária –, foi antes um animador, um “palhaço da burguesia”, como ele próprio se chamou, um bufão bem nutrido e endinheirado que a história, à qual ele e os demais modernistas jamais deram a menor importância, haverá de reduzir às proporções que lhe cabem.
FM | Em um texto crítico acerca do livro O anticrítico, de Augusto de Campos, tocas apenas tangencialmente em uma discordância tua do “ideário estético” do autor em questão, o que deve ser entendido como uma discordância do Concretismo em si. Em que se fundamentaria, de forma mais nítida, tal desacordo?
IJ São muitas as objeções que se poderiam arguir contra o concretismo. Poder-se-iam aqui, por exemplo, lembrar as 44 (!) objeções que Antônio Houaiss fez ao movimento naquela memorável noite de junho de 1956, no plenário da antiga sede da União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro, quando ali se reuniram, para expor seu ideário estético, os líderes concretistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, entre os quais os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Wladimir Dias Pino, Reynaldo Jardim e Ferreira Gullar. Tais objeções foram logo depois publicadas no Diário de Notícias e, quatro anos mais tarde, reunidas em volume (“Sobre poesia concreta”,em Seis poetas e um problema, 1960). Farei aqui, todavia, uma única e fundamental objeção, a que, a rigor, está contida naquela observação de Merquior que transcrevo na primeira de minhas dez respostas a este questionário. Ao despojar o signo linguístico de toda a sua carga semântico-afetiva e privá-lo de suas articulações sintáticas dentro do discurso, o concretismo como que renega a própria história da palavra e, o que é pior, dissolve a sua concreção fonético-morfológica. É por isso que, pelo menos para mim, nada existe de mais abstrato do que um poema concreto. O “signo cadavericamente linguístico” a que se refere Antônio Houaiss corresponderia assim, se me permitem a imagem, a um organismo isolado in vitro, já destituído de todas as suas inervações com o contexto verbal que lhe dá vida e, como tal, o justifica. Os aspectos plásticos e sonoros de uma palavra são apenas duas das infinitas faces do prisma em que consiste o signo poético na trama que ilustra sua vida de relações, relações estas que são também infinitas e, não raro, mágicas. E esse mesmo signo está carregado de valores semânticos, mórficos, plástico-visuais, afetivos e fonético-musicais, valores que só subsistem na medida em que subsiste o consórcio entre as palavras, problema este que foi magistralmente poetizado por Eliot numa das passagens de Little Gidding, o último de seus Four Quartets, quando escreve: “[…] E cada frase / Ou sentença de rigor (onde cada palavra se familiariza, / Assumindo seu posto para suportar as demais, / A palavra sem pompa ou timidez, / Um natural intercâmbio do antigo e do novo, / A palavra correntia, correta e digna, / A palavra essencial e exata, mas sem pedanteria, / O íntegro consórcio de um bailado unívoco) / Cada frase e cada sentença são um fim e um princípio, / Cada poema um epitáfio”. O que mais me intriga nos concretos é a genealogia a que afirmam pertencer seus precursores. De Oswald de Andrade, por exemplo, aproveitam a fragmentação do discurso (não da palavra) e os aspectos visuais do verso. Mas Oswald não se reduz a isso! A poesia mallamairca, que eles tanto invocam, é, como toda grande poesia, profundamente emocionada e sintaticamente coesa, e o que se observa no paideuma poundiano nada recorda os procedimentos concretistas, e sim a técnica do mosaico intertextual a que tanto recorreu Eliot, ou aqui mesmo, entre nós, Jorge de Lima, na Invenção de Orfeu. O tão decantado Un coup de dés equivale antes, ou tão-somente, a uma situação limite da poesia de Mallarmé, exatamente como o foram os Petits poèmes en prose, de Baudelaire, já que tais poetas haviam esgotado, ao longo de uma experiência pessoal intransferível, todas as possibilidades que à época lhes oferecia o verso. Em seu desvairado metaludismo, os concretistas desenraizaram a palavra do contexto verbal em que esta interage com outras palavras para alcançar assim, e somente assim, a sua individualidade e, mais ainda, a sua concreção verbal. Por outro lado, o transplante da estrutura ideogramática da escrita chinesa para a nossa língua é o mesmo que pretender implantar o chifre de um rinoceronte na testa de uma girafa. Os concretistas incidem nessa tolice de contrariar – ou mesmo assassinar – a índole da língua, de uma língua que, queiramos ou não, só é nossa por ser portuguesa. O “make it new” da poesia concreta não o faz nem novo nem velho simplesmente porque não faz nada: promove apenas um tumulto babélico no qual se confundem e se atropelam recursos que são específicos de outras técnicas artísticas. Não é que não se possa (creio até que se deva) recorrer na poesia a expedientes de outras artes (veja-se, a propósito, como Eliot se valeu de estruturas musicais em seus Four quartets, e o mesmo fez Manuel Bandeira em alguns de seus poemas), mas não como o pretendem os concretistas, ou seja, como se tais expedientes fossem próprios da linguagem poética, que tem lá suas leis e seus recursos específicos. E no bojo desse reducionismo suicida e autofágico os concretistas dissolveram o ritmo, a rima, a dicção, a metáfora e a imagem, elementos sem os quais a poesia jamais sobreviveu como expressão literária. A poesia concreta – e seu sucedâneo, a neo-concreta – reduzem-se apenas, como já se disse, a uma prática do ludismo pelo ludismo, de um grafismo ideogramático que, por não ser chinês – isto é, por ser praticado fora de um contexto linguístico e cultural que não lhe é próprio nem legítimo –, acabou por tornar-se caduco e epigônico.
FM | De acordo com Adorno, o Surrealismo, ao recorrer à técnica da montagem como um princípio, anularia então o papel criativo do sujeito, tornando-o passivo. Lembro que Huidobro rejeitava a escritura automática, afirmando: “A poesia é um desafio à razão, pois ela é a super-razão”. Que traços diferenciais poderíamos hoje observar entre o Surrealismo francês e o que se ramificou pela América Latina?
IJ A observação de Adorno é verdadeira, mas convém ponderar que somente se aplica à prática do Surrealismo enquanto imposição escolástica, enquanto estrita escritura automática, e nesse sentido tem toda razão Huidobro quando afirma que a poesia é a “super-razão”. É isso, aliás, o que Dylan Thomas, cuja primeira poesia revela forte influência surrealista, afirma em seu manifesto poético. O Surrealismo francês, ou seja, o dos discípulos de Breton, Aragon e Éluard, é um Surrealismo de escola, de manifesto. Ocorre que o Surrealismo sempre existiu, e não apenas na poesia. Surrealistas, por exemplo, foram diversos pintores flamengos, a começar por Bosch e pelos Brueghel, tanto o Moço quanto o Velho. E surrealista foi também Isidore-Lucien Ducasse, o conde de Lautréamont, em seus Chants de Maldoror. E isso para citarmos apenas esses poucos exemplos premonitórios. Claro está que o Surrealismo “de programa” se autodevorou, mas aquele que se confunde com o mergulho aos mais profundos estratos do subconsciente sempre existiu e continuará a existir. Aqui mesmo entre nós há poetas que o cultivaram com extrema rentabilidade, como seria o caso, entre outros, de Aníbal Machado, que obteve resultados extraordinários tanto na poesia (Poemas em prosa, ABC das catástrofes e Topografia da insônia) quanto na prosa, como se pode ver em “O piano”, “O desfile dos chapéus” ou “Viagem aos seios de Duília”, que integram as Novelas reunidas, ou em muitas das passagens e episódios de seu romance póstumo, João Ternura. O Surrealismo, por recorrer às realidades e manifestações oníricas que subjazem no inconsciente, foi e será sempre uma poderosa vertente do pensamento poético, pois suas imagens pertencem a uma linguagem metalógica, ou seja, à linguagem que é própria da poesia. O que não se pode é deixar que esse fluxo tenha comando autônomo, como acontece na escrita automática, e aqui voltamos àquela sábia observação de Huidobro. O que diferencia basicamente o Surrealismo francês daquele que se irradiou pela América Latina é que este último não foi programático, e chego mesmo a arriscar aqui que, em suas origens, ele se confunde às vezes com o realismo fantástico, que é fenômeno literário tipicamente latino-americano. Até mesmo um poeta engajado como Pablo Neruda – esse grande mau poeta, como dele diz Juan Ramón Jiménez –, foi, em certo sentido, profundamente surrealista, como o foram alguns outros. É que esses poetas, além do influxo que receberam da literatura francesa que então se escrevia, tiveram um contato muito forte com a literatura de sua própria língua, em particular com a poesia de García Lorca, que, digam o que disserem, jamais renunciou inteiramente às suas fontes surrealistas. E digo, enfim e afinal: enquanto houver incursão ao subconsciente no afã de decifrar os abismos da alma humana, haverá sempre, não um programa, mas uma prática surrealista que se confunde com a busca das raízes da própria vida.
FM | Em notável discurso proferido em 1976, Elias Canetti caracteriza o poeta como o “guardião das metamorfoses”. Em ocasião distinta, o poeta Pablo Antonio Cuadra afirma que “uma das maneiras de abordar o mito em nosso tempo é desmitificando-o”. Qual te parece a atitude que deva tomar o poeta em nosso tempo no sentido de resgatar o mito? Como recuperar significado e responsabilidade às palavras?
IJ Eu diria não apenas o “guardião das metamorfoses”, mas das próprias palavras, pois é dever de qualquer poeta zelar pela integridade da língua. E permita-me, mais uma vez, recorrer ao que diz Eliot a propósito dessa questão quando, em um seu ensaio “Johnson como crítico e poeta”, incluído na segunda parte de De poesia e poetas, sustenta: “Mas entre as variedades de caos nas quais hoje em dia nos encontramos imersos, uma é a do caos da língua, no qual não mais são visíveis quaisquer padrões de escrita, e onde assistimos a uma crescente indiferença para com a etimologia e a história do uso das palavras. E precisamos constantemente nos lembrar de que a sobrevivência da língua é responsabilidade de nossos poetas e críticos”. Entendo a afirmação de Canetti como uma exigência de que os poetas estejam atentos às transformações de sua época, pois só assim poderão cumprir aquela atribuição profética que ostenta toda grande poesia. Quanto a desmitificar o mito, é quase impossível não fazê-lo tendo-se em conta que os mitos foram criados em épocas cujas imposições não eram as de hoje, mas não creio que a durabilidade desses mesmos mitos esteja necessariamente comprometida por essa revisão, que é apenas sinal dos tempos, uma espécie de correção histórica. Na medida em que a história é gradualmente decifrada, alguns mitos tendem a perder sua importância e transcendência. Mas como desmitificar um mito como o de Sísifo, cujo significado nos remete ao eterno absurdo em que se debate até hoje o comportamento humano? Como dessacralizar os contos de fadas, se neles reside uma verdade que nenhuma sociologia ou psicanálise será capaz de ameaçar? O mito, a lenda, o conto de fadas lidam com essa matéria que é irredutível ao processo da razão, e não vejo mal algum nessa irredutibilidade, já que não podemos identificá-la com nenhuma espécie de irracionalismo. Tratar-se-ia antes, segundo creio, de um problema de linguagem e de arquétipos ancestrais que não podem ser esquecidos, sobretudo porque já se infiltraram numa forma de conhecimento coletivo da realidade. Como certa vez disse Chesterton, o mistério é a saúde do espírito, e não podemos adoecer como Voltaire, que, ao negar a existência do mistério, comportou-se apenas como um deplorável preguiçoso. E tal observação não é nem minha, mas de Baudelaire, num dos fragmentos de Mon coeur mis à nu. É assim estranho que alguns poetas jovens me acusem de racionalista, justamente eu que sempre afrontei essa onda racionalista que pretende reduzir o homem, como certa vez escrevi nas Três meditações da corda lírica, “a grau de ângulo, a lugar geométrico”. É nesse sentido que nós, poetas, devemos resgatar o mito, pois só assim será possível captar a magia da palavra enquanto signo poético, isto é, irredutível a qualquer forma de lógica ou a esse brinquedo moderno chamado computador, cuja burrice chega a causar estupor e através do qual uma horda de imbecis julga poder decifrar os mistérios que remontam à própria essência e origem do homem.
FM | Por último, gostaria de tua opinião em torno de uma afirmação de Octavio Paz no sentido de que “as formas poéticas modernas são demasiado escritas”, apontando como tarefa maior da poesia moderna “reconquistar o terreno perdido que abandonou à prosa”.
IJ Parece-me que a afirmação de Octavio Paz se destina apenas à má poesia discursiva que ainda hoje se escreve e que, infelizmente, floresce em proporções quase inimagináveis. E essa poesia, é claro, cedeu terreno à prosa. Todas as formas poéticas, e não apenas as modernas, foram sempre “demasiado escritas”, às vezes até demasiado bem escritas, o que não se deve aqui confundir com nenhuma espécie de beletrismo. Mas tem razão o poeta e ensaísta mexicano quando adverte para a deterioração de certas virtudes plásticas e musicais que só o signo poético ostenta, como se tais virtudes, porque esquecidas, estivessem a desmentir aquela tarefa que Mallarmé cometia aos poetas, ou seja, a de “purifier les mots de la tribu”. A afirmação de Paz é, todavia, perigosa, pois, se mal compreendida, poderá levar os poetas em período de formação à prática de certos expedientes que, por não serem específicos da arte poética, correm o risco de receber em suas mãos um tratamento desastroso. A poesia é, afinal, uma escrita, uma sequência de signos que se constelam, volto a dizê-lo, nos termos de uma linguagem metalógica que nada tem a ver com a logicidade analítica que jaz implícita no discurso da prosa. É na medida em que essa linguagem se descaracteriza como veículo de concisão e magia verbais que a poesia parece tornar-se “demasiado escrita”. De minha parte, embora sempre operando dentro do sistema da língua e da linguagem que ela instrumentaliza, busco sempre austeridade e mesmo avarícia, uma vez que, inclusive em altos textos poéticos, há sempre o risco da contaminação pela prosa. Mas se a poesia porventura renunciar um dia à sua condição de código escrito, que os críticos as desliguem do que entendemos por fenômeno literário e criem outra categoria capaz de absorvê-la como manifestação do espírito. Talvez uma categoria que, como tantas outras, não signifique coisa alguma. Quem sabe até a da abstração metalúdica em que se debate e agoniza o concretismo?
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3.
Ao final de 1998 o leitor brasileiro foi contemplado com a publicação de uma obra que lhe permite uma avaliação conjunta de muitos aspectos que informam e conformam nossa cultura, ou melhor: nossa visão de mundo a partir da literatura. Refiro-me a O Fio de Dédalo, de Ivan Junqueira, em primorosa edição da Record (Rio de Janeiro). A exemplo de outros volumes ensaísticos do mesmo autor, este O Fio de Dédalo apresenta-se constituído por uma recolha de textos críticos já anteriormente difundidos em outras circunstâncias (resenhas, prefácios, conferências).
Estruturalmente, no que difere de obras de igual importância, a exemplo de À sombra de Orfeu (1984), O Encantador de Serpentes (1987) ou O Signo e a Sibila (1993), é que se mostra equacionado com o múltiplo território de ação de seu autor, ou seja, ao definir uma tríplice conexão crítica (a poesia, o ensaio, a tradução), acaba permitindo ao leitor uma leitura mais acurada de sua própria reflexão estética. O Fio de Dédalo divide-se em três capítulos: “De poesia e de poetas”, “Do ensaísmo e da crítica” e “Da arte tradutória”. A referência básica a Dédalo vem não exatamente do eventual intrincado de cada trama, mas antes, bem antes, do aspecto de que a arte da crítica não se esgota em si mesma. Ivan Junqueira evita participar de uma falácia adjudicatória, que exibe o exercício crítico como marco classificatório ou determinista. Sabe que o diálogo do crítico com a obra de criação é pautado pelo desafio da identificação e, em consequência, com as possibilidades de iluminação que aquele conseguirá imprimir a esta.
Nesta estrutura apresentada em O Fio de Dédalo observam-se algumas particularidades, além da óbvia articulação de três gêneros que perfazem a atividade hoje comum a todo grande escritor: a criação, a crítica e a tradução. Nota-se que Ivan Junqueira reuniu, em alguns casos, dois textos críticos sob um mesmo título, textos estes escritos em épocas distintas. Assim é com as resenhas acerca de livros de Alexei Bueno (poesia), José Paulo Paes (ensaio) e Ivo Barroso (tradução). A pertinência vem do fato de se poder avaliar tanto o que se modificou no pensamento do crítico quanto o que tenha ocorrido com o desdobramento estético do autor sob foco.
Outro aspecto em destaque: a importância de se discutir o exercício tradutório. O Fio de Dédalo aborda o trabalho de tradução – essencialmente de poesia – de nomes como Ivo Barroso, Jorge Wanderley, José Paulo Paes, José Lino Grunewald, Sebastião Uchoa Leite e Silviano Santiago. Embora uma recolha de onze resenhas – que vão de 1985 a 1997 –, é patente a atenção crítica que Junqueira vem dedicando a seus pares nesta aventura a um tempo arriscada e essencial.
A exemplo de outros de seus livros, o que acabamos encontrando é um diálogo aberto com a poesia, que se dá até mesmo pelo fato dele próprio ser um dos mais destacados poetas neste país. Recordemos, a propósito, que em O Signo e a Sibila há um capítulo intitulado “O modernismo e seus herdeiros”, a ser considerado, sem favores de ordem alguma, a leitura mais acurada de que dispomos acerca do Modernismo. Da mesma forma, destaca-se agora neste O Fio de Dédalo o largo estudo sobre a obra crítica de José Lins do Rego, onde nos mostra uma face esquecida ou desconhecida do autor de Menino de Engenho, não só a recuperando, mas, sobretudo, avaliando e reafirmando sua importância.
Em sequência ao estudo sobre Lins do Rego encontramos uma série de outras reflexões contundentes, a exemplo dos textos sobre a obra ensaística de José Guilherme Merquior, Davi Arrigucci Jr., José Paulo Paes e sobretudo Othon Moacyr Garcia. Inclui-se aqui uma resenha ao livro de Wolfgang Iser (O ato da leitura), cuja panaceia em torno do “efeito estético” – que não passa, a bem da verdade, de um “efeito estufa” – registrou-se graças a uma polêmica (1996), na imprensa carioca, disparada por Luís Costa Lima, um facilitador da incongruente “estética da recepção”, no fundo um dos reflexos do impasse radical do mundo acadêmico, que disputa com a arte um lugar cabível apenas ao diálogo.
No capítulo mais extenso do livro, “De poesia e de poetas”, Ivan Junqueira expõe sua defesa da poesia, celebra algumas obras consolidadas e arrisca-se ao diálogo com a estreia de alguns autores. São textos – entre resenhas e prefácios – que dão notícia do surgimento ou confirmação de algumas vozes poéticas no Brasil. O aspecto principal vem das seguidas observações que faz da produção mais recente de nossa poesia, salientando que a mesma “reflete uma carência de programas literários ou ideários estéticos em torno dos quais se pudessem reunir os adeptos dessa ou daquela doutrina poética”. Não creio, aqui, que se trate de uma característica da poesia escrita no Brasil, mas antes o reflexo de desnorteamento geral, que parte do absoluto esgotamento de um modelo, justamente o que Junqueira chama de “programa literário”.
Concordo, no entanto, com Ivan Junqueira, ao recusar que tal agonia estética deva ser convertida em algo sistêmico, como alguns já se apressaram em classificar de pós-modernidade. Trata-se, tão-somente, de uma má safra, onde impera a atitude basbaque do jovem poeta, compreensivelmente iludido de si, e a absoluta falta de seriedade na leitura que se faz dessa “poesia experimental ou quase anêmica que continua a confundir boa parte dos leitores”. Neste sentido, O Fio de Dédalo instiga-nos à leitura de alguns desconhecidos poetas, a exemplo de Frederico Gomes, Márcio Tavares d’Amaral, Ayrton Pereira da Silva e Renato Rezende.
Encerram-se estas notas sobre O Fio de Dédalo salientando um fato editorial: o livro, embora não de desfaça de seu caráter de miscelânea, aproxima-se de uma unidade crítica, de tal forma que nos leva a discordar de seu autor, quando anuncia tratar-se de sua despedida deste território. A sugestão cabível aqui é a de que encerre a atividade de recolha de textos críticos e passe a tecer, com a mesma obsessão e sentido ontológico de Dédalo, um fio que nos leve da mais insuspeita tradição ao puro devaneio, até que um dia possamos entrar e sair, com um mínimo de presciência e outro tanto de acuidade estética, do labirinto ulterior de um caracol.
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>>> TRÊS POEMAS <<<
MORRER
Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;
é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;
é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;
é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;
é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;
é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.
A IMORTALIDADE
O que é a imortalidade?
Um sopro que nos carrega
para os confins da orfandade,
onde o espírito se nega
e de si já não recorda
após a última entrega?
Que luz é a que nos acorda
quando a morte, em dada hora,
bate à porta e chega à borda
do ser que se vai embora,
mas crê que não vai de todo,
pois do invólucro que fora
algo fica em meio ao lodo
que lhe veste o corpo morto
com a púrpura do engodo?
E o que cabe ao que foi torto
e nunca exigiu conserto?
Irá chegar a algum porto?
Será que na alma um aperto
não lhe purgou a maldade
quando do fim se viu perto?
O que é a imortalidade?
Uma insígnia, uma medalha
com que se louva a vaidade?
Ou não será a mortalha
que te poupa só a cara
escanhoada a navalha?
Será talvez a mais rara
das obras que publicaste
ou da crítica a mais cara?
Será isto, já pensaste,
a herança em que se resume
o que aos amigos deixaste?
Esquece. Sente o perfume
de algo que se fez distante:
a mão de uma criança, o gume
de seu olhar penetrante
quando viu, no ermo do cais,
que o tempo que segue adiante
é o mesmo que volta atrás
e confunde a realidade,
e a desmantela, e a refaz.
É isto a imortalidade:
esse eterno e estranho rio
que corre em ti e te invade.
E o mais é só o pavio
de um lívido círio que arde
no insuportável vazio
que enche toda a tua tarde.
ESSA MÚSICA
Essa música que retorna
como o perfume de uma rosa,
essa música que se entorna
de uma ânfora por cujas bordas
escorre ainda o mel de outrora,
essa música insidiosa
numa antiguíssima harpa eólica:
seria o vento em suas cordas?
Seria Orfeu vindo das forjas
do inferno a quem baixou, apóstata,
em busca da filha de Apolo,
Eurídice, a esposa morta
por quem até hoje ele chora?
Não é nada enfim. Tudo dorme.
Há, sim, alguém que à noite acorda
e vê em ruínas, sem memória
de um tempo que fugiu, mas volta
nessa música que se entorna,
e vai e vem, e vem e torna,
nessa música que retorna
como o perfume de uma rosa.