Entrevista concedida a Luciano Sáliche* e originalmente publicada em INFOBAE CULTURA, Buenos Aires. (28/10/2023). Traduzida ao português por Floriano Martins.
As fotos de César Bisso são de Maximiliano Luna.
“Décimo sexto, acho que é o décimo sexto”, diz César Bisso diante de seu último livro. É intitulado Andares e foi publicado pelas Ediciones La Yunta há apenas alguns meses. Uma vida inteira se passou desde que escreveu o primeiro, e talvez várias desde que rabiscou os primeiros versos, as primeiras palavras que desenharam uma metáfora, o reverso da realidade, a decodificação de uma emoção secreta. Agora, em um café do bairro de Agronomía, em Buenos Aires, que homenageia Cortázar –Rayuela Bar, como se chama–, Bisso conta a história deste livro. Nasceu, diz ele, como uma ideia. Há alguns anos, em Resistencia, cruzou-se com um poeta, professor e editor chacoense que vivia em Corrientes: Tony Zalazar.
“Quando você conhece outros poetas, você conta o que eles fazem. E ele me disse: me mande alguns poemas. Tinha alguns inéditos; mandei para ele, ele gostou e me disse: quero fazer um livro. Tinha uma editora, a Ananga Ranga, e no final de 2019 já tinha o livro impresso. Fui apresentá-lo em Corrientes, também em Resistencia, e estava pendente de fazer em Buenos Aires. Mas a pandemia chegou e tudo ficou arquivado na gaveta. Quando, em 2021, começamos a planejar novamente essa possibilidade de apresentá-lo em Buenos Aires, em Rosário e em Santa Fé, que era um pouco da vontade que ele tinha e eu também, recebi a terrível notícia de que Tony havia cometido suicídio Ninguém sabe os motivos. Eu tinha 40, 41 anos.”
“Ele, como editor, lançou o livro em partes, aos poucos, e distribuiu nas escolas de Corrientes. Ele tinha muitos sentimentos com os alunos. Também fui a uma feira que acontecia todo fim de semana: trazia livros e vendia. Ele adorava promover poetas. Quando o apresentamos em Corrientes trouxe uns vinte ou trinta livros que distribuí entre amigos. E aí foi praticamente esquecido, porque não havia cópias e porque Tony não estava mais lá.” Ao conversar com outro poeta, Alejandro Cesario, das Ediciones La Yunta, surgiu a ideia de republicá-lo. Ele deixou intacto o prólogo de Zalazar, acrescentou uma breve apresentação que fiz e mais alguns poemas. E aqui está o livro, renovado.
O sociólogo, jornalista e poeta nascido em Coronda em 1952 acaba de publicar um novo livro: Andares.
LS | Há um poema dedicado a Salazar, mas também a muitos artistas: Chaplin, Simone, Cafrune, Huidobro, até à sua família. O que esse livro representa para você?
CB | Rafael Oteriño, que possivelmente me acompanhará na apresentação que veremos se será em novembro ou dezembro, me contou uma coisa sobre Agamben: que poetizar é muito importante, mas às vezes ainda mais importante é saber-se poetizado. Foi o que ele sentiu no poema que lhe dediquei. Às vezes o poeta nem percebe que alguém escreve sobre ele, mas para mim é um alívio. Este livro é um livro que se reconstrói a partir de experiências, emoções, memórias, viagens pelo mundo. E você capta momentos que te levam a dizer algo de poesia, não de mera percepção. Não escrevo por profunda admiração por determinado artista, mas pelo que aquele artista representa em algum momento da minha vida. Talvez eu não saiba muito mais sobre Chaplin do que os poucos filmes que pude ver, mas de repente encontro a postura do artista perante a vida. E aí surge algo: como captar isso da poesia. Assistindo a um documentário sobre Nina Simone descobri como foi a infância dela. Ela estava andando pelos trilhos da ferrovia na Carolina do Norte e de um lado tinha a cidade branca e do outro a cidade negra. Era um lugar onde a Ku Klux Klan era muito ativa. E ela teve que caminhar até a casa da professora de piano sem olhar para os lados dos trilhos porque havia cadáveres pendurados nas árvores. Fechei os olhos para não ver aquela vida terrível. Também fiquei impressionado quando ela se posicionou sobre questões sociais nos Estados Unidos. Ela pede que sejam o que quiserem ser, e que a verdade transcenda sobretudo aquele artifício da vida de um artista. São coisas que, quando ditas poeticamente, podem sair melhor.
LS | A questão é: por que a escolha da poesia? Porque aquela história ou aquela cena pode ser contada de várias maneiras, até através do desenho.
CB | Lacan disse que o poeta não sabe o que diz, mas diz primeiro. Talvez a poesia lhe dê a possibilidade de dizer determinada coisa antes de outra pessoa porque é dita de uma determinada maneira. O poeta tenta distanciar-se de qualquer expressão panfletária comum e facilmente acessível, digamos, ao leitor. Ele tenta, primeiro, interferir na linguagem, porque é a linguagem que transcende o poeta. Até o precede. Escolhemos a poesia porque a nossa vida é atravessada pela poesia. Aos 13 anos, quando perdi minha irmã, um pouco mais velha que eu, a primeira coisa que me ocorreu foi escrever um poema. Sem saber o que era um poema. Mas surgiu aquela ideia: um poema escrito a partir da dor. Não era um poema de amor, não era um poema de tremor. E então, a partir daí me ocorreu que tudo o que me veio à mente, tudo o que pensei, tudo o que vi, poderia ser traduzido em versos. Foi um processo lento que mais tarde me deu oportunidades devido a fatores extraordinários. Primeiro, entrar em uma escola secundária, uma escola industrial que nada tinha a ver com literatura, mas que, necessariamente, tinha de ensinar literatura. Tive uma professora, uma escritora, e ela entendeu, quando eu tinha apenas 14 anos, o que estava acontecendo comigo e começou a me incentivar. E mais tarde, aos 17 anos, El Litoral de Santa Fe publicou alguns de meus poemas em um suplemento cultural. E estive em uma oficina literária onde comecei com leituras fortes: Whitman, Vallejo, Neruda, poetas que eram muito populares naquela época.
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Andares, na mesa do bar, ao lado da xícara, foi publicado há poucos meses pelo selo Ediciones La Yunta.
Em meados dos anos 60, Delia Travadello, sua professora, convocou-o para um encontro com um grande poeta. “Não sabíamos quem ele era. E se ele mencionou, nós também não gravamos. Ele me escolheu porque sabia que eu gostava de tudo isso. Éramos vários. Ele nos levou a uma confeitaria central em Santa Fé. E lá conheci o poeta que estava sentado, apoiado em uma bengala, olhando (ou não) pela janela. Foi Borges”, diz Bisso sobre aquele encontro germinal, inesquecível e mítico em sua biografia pessoal. “Recentemente entendi tudo isso melhor, porque comecei a fazer uma linha do tempo ao contrário. Você sabe quem foi o professor do Colégio da Imaculada Conceição que levou Borges? Bergoglio.
Naquela manhã ele trouxe para a reunião um questionário com diversas perguntas. Uma questão que ele agora lembra tinha a ver com a linguagem, o que a linguagem representava para Borges, como ela se relacionava com aquele artefato enigmático. “E ele me respondeu, tenho essas palavras aqui gravadas na minha mente: Sobriedade, a linguagem deve ser sóbria. E ele também me falou que dizer um sol luminoso não é a mesma coisa que um sol indescritível. Essa foi a pergunta que eu tive que fazer. Outro menino fez outra; e outra pessoa, outra. E no dia seguinte lembro que a professora estava em êxtase. Nós, por outro lado, ainda não tínhamos plena consciência do que era poesia ou de quem era Borges.”
Nessa altura Bisso não residia em Coronda, onde nasceu, em 1952, mas sim em São Tomé. Seu pai, funcionário da alfândega, havia sido transferido e com ele sua família. Aos poucos foi sequestrando a poesia e em 1976 publicou sua primeira coletânea de poemas: La agonía del silencio. Depois, “por razões óbvias”, diz ele, “um fechamento total”. O segundo saiu em democracia, em 1986, El límite de los días, já em Buenos Aires, onde também estudava Sociologia na UBA. Formou-se em 1992 e foi professor universitário por pouco menos de trinta anos. Além disso, é claro, foi jornalista: dirigiu La Voz de Santo Tomé, trabalhou no Tiempo Argentino, foi libretista da Rádio Splendid e correspondente da Rádio Rebelde de Cuba.
“Meu grande sonho é que a poesia um dia pacifique as feras.”
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LS | Você também se dedicou a ensaios sociológicos.
CB | Sim, escrevi muitos ensaios. Alguns são publicados em revistas acadêmicas. Nunca acabei com um livro, mas acho que foi mais por preguiça do que qualquer outra coisa, porque tinha muito material para trabalhar. Talvez o tema que mais trabalhei tenha sido poder e conhecimento nas prisões. Passei muito tempo dando aulas no presídio Devoto, no presídio de Ezeiza: disciplinas do curso de Sociologia. Eram grupos que nunca ultrapassavam oito ou nove alunos. Eles se viam muito identificados com essa luta pela construção de novos conhecimentos, pois era através do conhecimento onde poderiam alcançar algo e resistir, caso não estivessem submetidos a uma disciplina prisional de controle e submissão que não leva a nada. Reagir a uma realidade muito dura e sair com alguma possibilidade de reeducar, de ressocializar. Conversamos muito sobre o poder estabelecido, o poder do sistema que também, de alguma forma, nos aprisiona. Talvez todos os meus poemas tenham algum sinal disso, assim como têm um sinal muito fluvial devido ao meu entrelaçamento com o rio, com as ilhas, com a natureza. É uma construção metafísica: o mundo completamente despojado, uma imagem bastante panteísta, onde tento retirar todo o condicionamento social, a ilha pura, com as suas criaturas reais, sejam flora ou fauna. Talvez a minha abordagem tenha uma postura mais orientalista, mas sem seguir a poesia de Juan L. Ortiz. Sim, sempre olhando para ele com o canto do olho. Juanele é um poeta que ilustra muito bem tudo o que estou dizendo agora. Sua poesia é superadora, aluvial.
LS | Você fez parte dos que promoveram o projeto de lei para reconhecer a natureza como sujeito de direito. Há, além de uma visão poética, uma visão política.
CB | É uma medida linda e cativante. Entre as iniciativas do Projeto Teuco Castilla está a criação de florestas de poesia, para que cada floresta se transforme em um poema. E cada poema em uma floresta. É uma forma de sair deste mundo de cimento que nos assedia todos os dias. Além disso, porque o ambiente está em perigo, obviamente está em perigo, vemos isso todos os dias com as inundações, com os incêndios que ocorrem em diferentes partes do planeta. E foi assim que isso aconteceu. Fiquei entusiasmado com a ideia. Levei os organizadores para Coronada em março do ano passado. Conseguimos criar ali a Floresta da Poesia. Já foi instalado dentro da Creche Municipal, em um recanto muito agradável, para que aos domingos, esporadicamente, as pessoas se reúnam para ler poesia e tocar música. Trata-se de fazer algo a partir do tamanho pequeno de uma cidade. Às vezes você só procura o centro da cidade, mas aqui o que fizemos foi praticamente transferi-lo para a periferia da cidade. Para que as pessoas saibam que depois do centro existe vida.
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“Não estou resignado a desistir”, escreve Bisso neste livro. “A caminhada lenta depois da lua sustentará minha pegada solitária”, também. Em Andares coexistem uma reflexão permanente sobre a poesia, postais de recantos secretos de bairros e cidades, homenagens à humanidade de determinados artistas e uma eterna questão sobre a beleza e a sensibilidade do mundo. No prólogo, Zalazar diz que Bisso é um “baqueano de poesia” que leva o leitor pelas “frescas pegadas da utopia”. Está confirmado neste livro, mas também em toda a sua obra: a viagem no trem de San Martín que faz em La jornada, a contemplação do rio em De abajo mira el cielo e o mistério de um gato em Haikus felinos
“Escrevo desde a incerteza”, diz ele agora, neste meio-dia ensolarado. “Da desesperança, do medo, da dor e, sobretudo, da força de sentir que vale a pena escrever. Depois amar e depois sofrer novamente enquanto há vida, como a letra do tango.” E acrescenta: “Há esperança. Como pode não haver? Hoje uma das grandes questões é como ela é construída. Porque se acredita que todas as coisas se resolvem econômica ou politicamente. Não, acho que há uma questão cultural subjacente, acima de tudo. A culpa é de todos ou não é culpa de ninguém. É o que é, é o que existe. Temos que nos apegar ao que somos, não ao que não podemos ser, porque certamente todos queremos ser diferentes.”
Não há cinismo, nem mera descrição. Na poesia de César Bisso há um compromisso total com o poema. Ele está lá dentro, até o pescoço, sem conseguir sair, sem querer sair. Num poema de Andares ele escreve: “O garçom retira a xícara. Olha com espanto. / Há algo de errado com você, senhor? Não, estou bem / É apenas mais uma ferida piedosa da escrita.” E em outra: “O poema é culpado porque não sabe ser inocente”. Agora, diz: “A poesia é verdadeira quando não incorpora nenhum instrumento de poder para se expressar e não se deixa atacar pela arrogância de um sistema perverso que não teme o poeta, mas o poema”. E acrescenta: “Meu grande sonho é que um dia a poesia pacifique as feras”.
“O poeta tem que ficar do outro lado e tentar ver além. Nem sempre consegue. Raramente, na verdade. É a única possibilidade que temos.”
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LS | O que lhe permite o olhar poético, que tem aquele olhar que os outros não têm?
CB | Em princípio, nem sempre o mesmo olhar pode existir, porque ninguém se banha duas vezes no mesmo rio. Posso garantir que você sentou em frente ao mar e não verá o mesmo mar que viu ontem. E a mesma coisa acontece com a vida. E a mesma coisa acontece com a sua vida urbana. Do ponto de vista do poeta nunca mais será o mesmo, nunca poderá ser o mesmo. Somos obrigados a transformar o mundo através das palavras, mesmo que não o consigamos, mas esse é o nosso lugar. Fala-se melhor através de um poema do que a partir da ambiguidade do pensamento instituído. É preciso falar a partir do corpo. Não é missão do poeta falar a partir daquele pensamento que já se tem na mente e repete constantemente, ou agir a favor ou contra algo, ou defender-se ou atacar. O poeta tem que ficar do outro lado e tentar ver além. Ele nem sempre consegue. Raramente, na verdade. É a única chance que temos.
LS | Por que continuar apostando na poesia em um mundo como este e em uma época como esta?
CB | Porque a poesia nos leva a olhar para alguma coisa e procurar sempre outra reviravolta. “O que você vê?” Às vezes nos fazemos essa pergunta entre amigos. “Feche seus olhos. O que você está vendo?” E alguém começa a escrever. Foi isso que os surrealistas me ensinaram muito: para mim, a arte mais revolucionária que surgiu até agora. Permite procurar dentro de um grande conglomerado um pequeno ponto, um pequeno buraco que faz ver algo diferente. Agarro-me a isso e procuro falar a partir daí, porque senão, como dizemos, acaba sendo uma grande celebração de algo que não diz nada. Encontre aquele momento, aquele lugar para poder expressá-lo. Como os bateristas de Trinidad, que podem desejar a falta de uma Zitarrosa, mas sempre esperam um novo amanhecer. Aí está depositada toda esperança, de que será um novo amanhecer diferente do anterior.
Luciano Sàliche (Argentina). Nasceu em Chivilcoy em 1988, é jornalista da Infobae Cultura e diretor da revista Polvo. Estudou na Faculdade de Ciências Sociais/UBA. Trabalhou como diretor editorial da revista Entorno.