Apresentação do autor por Floriano Martins
Carlos Lima (Brasil, 1945) é poeta, ensaísta e tradutor. Durante certo momento em sua vida foi diretor do jornal Alguma Poesia, juntamente com Moacyr Félix, nos anos 1980. Aautor dos livros Cantos Órficos (1976), Anatomia da Melancolia (1982), Terra (1988), Poemas Esquerdos(1993), Rimbaud no Brasil (1993), Phosphoros (2007), Genealogia Dialética da Utopia (2008) e Todos os Dias (2015) – Este último reúne a poesia completa escrita até então. A seu respeito, escreveu Claudio Willer:
A duplicidade dos signos na poesia de Carlos Lima – o fato de cada palavra conter seu duplo, o oposto do seu significado comum – tem a ver com oposições e contradições de natureza bem mais geral, com o fato de que, como tão agudamente assinala Octavio Paz, “a oposição arte-vida, em qualquer uma das suas manifestações, é insolúvel”. Seu texto-colagem é contraditório, rompendo a sequência do discurso lógico com uma sucessão de imagens e citações aparentemente díspares, na medida que procura abarcar e expressar todos estes contrastes e antinomias que caracterizam, em última instância, a condição humana.
Estudioso do Surrealismo, acaba de ser publicado, pela ARC Edições/Sol Negro Edições, o livro Para uma poética da utopia, onde reúne ensaios e traduções, que trato de apresentar, em texto de uma de suas orelhas, nos seguintes termos:
O poeta, ensaísta e tradutor Carlos Lima reúne substanciosa seleção de ensaios e traduções, priorizando o alentado tema das vanguardas, em especial o Surrealismo, corrente da qual ele é um capaz estudioso, apresentando também em sua criação poética uma sutil afinidade. Dentre seus livros de poesia, um deles se destaca pela rara beleza imagética, Anatomia da melancolia, de 1982. A escolha ao acaso de uma imagem tecida em um de seus poemas nos dá uma ideia da vertigem que sua poética pode alcançar: A vida apenas esta / no exílio selvagem dos meus olhos perdidos dos teus / na vertigem do abismo desse céu onde se escreve a palavra nunca. Neste poema dedicado a André Breton, Carlos Lima atesta o que ele próprio chama de sua aventura lucilante, aventura que se expande pelo território da tradução, como essa valiosa seleção que nos apresenta neste Para uma poética da utopia, onde se verifica não apenas o labor tradutório, a intimidade que exibe com seus autores prediletos, como também a acertada e insuspeita decisão por uma mostra de primorosos poemas, como aqueles assinados por Artaud, Breton, Huidobro e Pellegrini. Prova-se com isto que o trabalho do tradutor de poesia excede a simples versão de uma língua a outra, exigindo também o conhecimento poético que lhe permite a decisão valiosa por este ou aquele poema. E Carlos Lima também confirma um domínio estético ao estudar as variadas vozes e assuntos pertinentes à vanguarda, destacando esse aspecto mágico de sua utopia. Para uma estética da utopia é, portanto, um livro que, sob todos os prismas de sua feitura, nos incita a uma viagem fulgurante, pelo interior dessa poesia que se encontra entre as mais reveladoras poéticas do século XX.
Em uma rápida conversa com ele, observei que a poeta e tradutora Elys Regina Zils, ao lado de Anderson Costa, tem em preparação um volume de entrevistas que revelam bastidores relevantes do Surrealismo no Brasil, ele então me disse estar de acordo com seu valor, acrescentando que qualquer coisa dentro desse caminho do surrealismo sempre é importante. Para ter uma penetração e também porque o surrealismo foi muito mal definido. Teve uns momentos que não se deu conta. Carlos precisou ainda algumas sutilezas, como: No Brasil, o surrealismo não é assim uma coisa tão íntima. Fica de fora. Tem sempre uma coisa que te converge para outra aproximação. E recordou que uma das essências do Surrealismo radica na turbulência que sua linguagem acaba sempre por provocar.
A SARÇA ARDENTE
SIM ali com seus olhos famintos de medusa
como uma musa trágica na floresta dos sentidos
lavrada pelo orgulho da manhã
o sol de abril e a grande revolução
dos corpos nus perdidos na primavera
azul do sangue e que corroem sonhos
cegos como as marcas do não
ali onde trezentas rosas vermelhas assassinam meu coração
os nenúfares embriagados choram
sob a capa de chuva da palavra AMOR.
A NATUREZA DAS COISAS
a Dadá
Ela
caminha nos trópicos é um arquétipo de sombras
quando se despe é quase um incêndio
ela
possui a cruel beleza dos monstros antigos
o sol nasce em sua cintura
e cega os enigmas as ruínas do silêncio
ela
é a mãe do mistério das coisas
perto da sua boca a natureza não chora
seus pés violetas são fábulas de sonho
e os seios por toda cidade apagam as estrelas
ela
é (apenas) música totem o aroma
de urzes surdas
entre seus olhos e o meu assombro
ela
desfaz a ameaça dos dias.
A OSTRA MORTA OU PETER SCHLEMIHL E SUA SOMBRA
a Ricardo G. Dicke,
“Mago do Cerrado”
Ainda subiremos aos telhados da noite
arrastando na carcaça velhos e novos sonhos
levaremos nossos pés entre coisas nulas
entre coisas nuas agitaremos nossos cabelos
brancos
nem vítimas nem algozes
na felicidade proibida das coisas próximas
“Aqueles momentos ficarão perdidos
no tempo como lágrimas na chuva”
seremos adoradores perquiridores
os últimos de inédita súplica noturna
“tente pensar com o coração”
em voz baixa ler esse poema
eu não vou chorar
afinal dezembro é uma caixa fúnebre
uma vocação para o declínio dos corpos
invenção do amor a seus escravos
só a paixão os salva
Luz clamando contra muros
cotidianos giramos amordaçados
olhando pelas ondas o tempo perseguir ladrões
do odor de vozes velhas e suas cinzas
Para os vermes socrática paciência!
Fala rápido Carrasco contra Vítima
Rápido Cadela da Grande Raiva!
A HÖLDERLIN
No cimo da mais alta montanha
em meio a tempestade mais rude
cantas para os amantes
únicos destas altitudes, destas solidões.
Serás sempre o errante, o solitário,
permanece ainda tua alma mendiga de repouso?
Que pode o mundo dar-te
comparado a alegria da dor sagrada
bênção amadurecida em dias plenos
do fogo divino contemplado.
À um sonho de outrora
arrastaram-te as chamas da noite
queimando teus olhos a luz
de astros terríveis, insondáveis.
ESPÍRITO DO TEMPO
a Darcílio Lima
Solitário ergo-me sobre abismos
sem repouso para o meu sono
sem abrigo para o meu cansaço
sem céu para a minha paz
sem deuses para minha ira
sem túmulos para os meus mortos
sem templo para minha fé
sem idade: neste tempo, neste mundo.
ergo-me solitário sobre abismos
como um rio arrastas minha alma, ó tempo!
Como um carrasco escarneces de minha dor,
que anunciam tuas asas noturnas?
Que terna amante virá acalentar minha melancolia?
Sobre a torre de saturno ergues tua espada, Fatalidade!
Belos poemas, especialmente os três primeiros.
Alvíssaras! Como é linda a poesia quando ela é… simplesmente poesia.