5 Poemas de Ismael Nery

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Por Floriano Martins

O Essencialismo em Ismael Nery (1900-1934) por vezes se aproxima do Surrealismo como o Creacionismo em Vicente Huidobro (Chile, 1893-1948), seja pela relação entre ser e linguagem, seja pela perspectiva demiúrgica de criar mundos a partir de seu próprio eu. Nos três casos podemos evocar, não sem a presença perene de Lautréamont, a imagem de um poema de Ismael Nery: Sou o gérmen de um Deus, toda a gente o é também. Em sua Confissão inconfessável, Huidobro conclama: Amigos! Sejamos os últimos enganados de uma era equívoca e perversa, sejamos os primeiros homens autênticos; soltemos os pés das correntes e dos grilhões e lancemo-nos embriagados de liberdade na dança da luz frenética. Esta mesma luz frenética a encontramos em uma declaração de Nery: Todos os conceitos que se possa fazer do artista fora do essencialismo transformarão o artista em objeto de arte, deslocando, portanto, a ideia de valor e subordinando-o ao papel de ponto de referência. A ideia justa das coisas só poderemos conseguir pelo método essencialista, que consiste em receber sem parti-pris todas as emoções que se operem em nosso inconsciente e que se transformem em afinidades ou repulsas segundo a dose que temos de instinto de conservação, ponteiro da moral. Por caminhos paralelos, ambos desfiaram o meu instinto sábio de percepção da presença do homem na criação. Huidobro e sua obra poética; Nery e sua obra plástica. Criacionistas e essencialistas, passaram pelo Cubismo e o Surrealismo até chegaram a uma singular alquimia que enlaça figurativismo e abstracionismo e reinventa o instante em cada mundo perdido. Ismael Nery nos deixou uma breve série de poemas (alguns em prosa), que acentuam essa proximidade com o chileno, uma proximidade espiritual e não estética.


A UMA MULHER

Eu queria ser o ar que te envolve
Desde o teu nascimento.
Eu queria ser o teu vestido que te esconde dos outros.
Eu queria ser a tua camisa que te conhece em segredo,
Eu queria ser o teu leito onde te abandonas ao teu próprio frio.
Eu queria ser teu filho e teu amante,
Eu queria que fosses eu.
Eu queria ser teu amor e deu Deus.
Eu queria não existir.


POEMA PÓS-ESSENCIALISTA

O silêncio provocou-me uma necessidade irreprimível de correr. Abalei como uma flecha através dos mares e montanhas com incrível facilidade e sem cansaço. Eis-me agora sentado diante de uma paisagem em formação, ainda não colorida. O meu pensamento agora é que percorre o que acabei de percorrer, e admiro-me, então de nada ter encontrado, senão ao chegar o rastro fosforescente que deixei ao partir.
Os mares são agora ridículos lençóis d’água, de uns três ou quatro palmos de profundidade. As montanhas são nuvens estáticas, que o eterno medo dos homens transformará em granito. Tudo é pavorosamente desabitado. Não há leões nem elefantes nos desertos da África. Não existem as pirâmides nem a Torre Eiffel. Existe apenas eu mesmo, que me percebo inversamente por uma ideia que chamo mulher e que paira rarefeita sobre a superfície do globo – ideia incompreensível porque nada existe na terra além de mim mesmo. Volto a percorrer novamente o espaço, porém, desta vez, com a lentidão do crescimento das plantas, multiplicando-se progressivamente na minha ideia para mostrar-me a mim mesmo. Os mares, agora, são profundos e as montanhas se solidificam. Aparecem leões e elefantes nos desertos da África. Construíram as pirâmides no Egito e levantaram a Torre Eiffel, em Paris, no ano em que um outro eu nascia em Belém do Pará. Tudo se povoou transbordantemente. Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através das grades, aguardando o julgamento do crime nefando que cometi de usar a mim mesmo, na minha mãe, mulher, filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada. Voltarei, ainda uma vez, para ser o meu próprio juiz. Nada existe, além de mim mesmo, senão para mim.
Silêncio.

EU

Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos,
Eu sou o marido e a mulher,
Eu sou a unidade infinita
Eu sou um deus com princípio
Eu sou poeta!
Eu tenho raiva de ter nascido eu,
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim,
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos,
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo mundo.


A UMA MULHER

Só te quero para mim se te puder dar aos outros,
Porque os outros não são senão eu ampliado.
Quero ver-te beijada por todas as minhas bocas,
Quero ver-te abraçada por todos os meus braços,
Quero ver-te numa rótula e depois num altar
Distribuindo o castigo e o prêmio final
Que merece um poeta na escola da vida.
Quero ver-te no céu ou talvez no inferno.


POEMA

Estou com o olho no telescópio que está dentro da barriga aberta da cúpula. Observo a lua, a filha da lua, a neta da lua, toda a família da lua, menos o marido dela. Eu gosto da cor da lua, mas acho incompleta a sua forma. A lua é uma mulher gorda, que parece magra, magríssima, abstrata. Eu gosto das mulheres abstratas que vêm ao mundo sem pai nem mãe nem irmãos, e que não nasceram em nenhum país nem tão pouco no mar. Gosto mais de ter uma mulher em pé na minha cabeça do que pendurada em meu pescoço. O meu pescoço, às vezes, não aguenta bem o peso da minha cabeça, porque ela está cheia de coisas que quase sempre eu não gosto. Tenho uma formidável atração pelo que detesto. Inclusive eu mesmo, Ismael Nery: nunca consegui ouvir nem dizer este nome sem sentir uma comoção – mas não sei bem que espécie de comoção eu sinto ouvindo ou dizendo este nome. Há nomes também que me emocionam e me obrigam a inventar um físico para eles. Nunca vi ninguém que escapasse completamente a uma crítica minha – nem eu próprio. Terei que captar a minha sinceridade em alguém que não seja eu, e até muito pelo contrário – que seja bem diferente de mim. Preferiria olhar as mulheres de cabeça para baixo e suspenso por um fio de aço, do que de outra maneira qualquer. A desorganização das coisas não me agrada, também como a organização. Gostaria de ter um criado moral para arrumar o meu cérebro e consolar nas minhas ausências aqueles que moram comigo, de mim e para mim. O meu maior instinto é o da paternidade, que aplico a tudo e a todos. A minha maior vontade era ser a sombra de tudo e de todos, afim de nascer e morrer com tudo e com todos e em todos os tempos. Não haverá um homem que me determine moral e fisicamente? Sou o gérmen de um Deus, toda a gente o é também.

obra de Ismael Nery

2 comentários em “5 Poemas de Ismael Nery”

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