Murilo Mendes (Brasil, 1901-1975) – Série Um Século de Surrealismo / Poetas

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Série Um Século de Surrealismo – Poetas, 17
Organização e tradução de Floriano Martins

Murilo Mendes foi amigo de muitos surrealistas, especialmente dos artistas plásticos, e, ao escrever sobre alguns deles, jamais deixou de afirmar suas ideias acerca do Surrealismo. Além do espírito duro de Breton, para o brasileiro menos tolerante e eclético que o seu próprio, dois outros aspectos no movimento francês incomodavam o autor de Mundo enigma. O primeiro deles encontramos na recordação que tem de seu encontro com Max Ernst: orientada a conversa para o Surrealismo e sua missão de vanguarda entre as décadas 20 e 30, o pintor vai resumindo as dificuldades que teve com o grupo, até a ruptura definitiva, em 1938, quando alguém, credenciado, procurou-o com o fim de informá-lo que, por motivos políticos, cada surrealista devia empenhar-se em sabotar por todos os modos possíveis a poesia de Paul Éluard. O segundo aspecto, o encontramos em um texto seu sobre René Magritte:

O Surrealismo, teoricamente inimigo da cultura, tornou-se num segundo tempo um fato de cultura; e muitos surrealistas, superando a técnica do automatismo, dispuseram-se a trabalhar com um método planificador. Por isto mesmo, quando uns vinte anos atrás Breton procedeu em Nova York à revisão analítica do movimento, a contragosto incluía Magritte entre os pintores surrealistas, insinuando que o seu processo de compor não era automático, antes plenamente deliberado.

Ou seja, os excessos na postura iconoclasta de muitos surrealistas, juntamente com o método do automatismo convertido em religião – segundo o poeta brasileiro, aí residia o desleixo artesanal surrealista –, seriam razões suficientes para que Murilo Mendes mantivesse sempre certa reserva em relação ao movimento. Observados estes aspectos, é possível entender muito bem sua famosa frase que no ambiente intelectual brasileiro soou como uma rejeição ao Surrealismo. Reproduzo aqui a frase em seu contexto, para que fique melhor compreendida. Em texto escrito em face da morte de Breton, ao recordar seus encontros – em 1952 e 1953 – com o poeta francês, nos diz:

Reconstituí também épocas distantes, a década de 1920, quando Ismael Nery, Mário Pedrosa, Aníbal Machado, eu e mais alguns poucos descobríamos no Rio o Surrealismo. Para mim foi mesmo um coup de foudre. Claro que pude escapar da ortodoxia. Quem, de resto, conseguiria ser surrealista em full time? Nem o próprio Breton. Abracei o Surrealismo à moda brasileira, tomando dele o que mais me interessava; além de muitos capítulos da cartilha inconformista, a criação de uma atmosfera poética baseada na acoplagem de elementos díspares. Tratava-se de explorar o subconsciente; tratava-se de inventar um outro frisson nouveau, extraído à modernidade; tudo deveria contribuir para uma visão fantástica do homem e suas possibilidades extremas. Para isto reuniam-se poetas, pensadores, artistas empenhados em ajustar a realidade a uma dimensão diversa. Os surrealistas, com efeito, não se achavam fora da realidade. Reconhece-o – muito tarde! – o dissidente Aragon, que nos recentíssimos Entretiens avec Francis Crémieux faz justiça ao Surrealismo e lhe atribui alta missão histórica. Mas não resta dúvida que num primeiro tempo a rigidez do método da escritura automática provocou numerosos mal-entendidos.

Todo este texto é muito rico e esclarecedor da afinidade que tinha o poeta brasileiro com o Surrealismo em si, cuidando apenas de explicar certas recusas de sua parte em aceitar a íntegra da cartilha, com seus excessos desnecessários. Destaco aqui a observação com que Murilo Mendes inicia o texto: Fui hoje enterrar André Breton no cemitério de Les Batignolles onde avistei um numeroso grupo de beatniks saudando pela última vez o beatnik por excelência. Luminoso entendimento – mesmo sem perder de vista sua voltagem irônica – que se encaixa à perfeição com outra reflexão: O Surrealismo foi a reta de chegada do processo intentado ao realismo, processo este que sofreu muitas metamorfoses, gerando grupos e escolas que só na aparência se opunham. O registro do Surrealismo na América está configurado, essencialmente, por esta coincidência opositiva. Diante disto, e observando a obra poética de Murilo Mendes, livros como O visionário (1941), As metamorfoses (1944), e Mundo enigma (1945), não resta dúvida quanto a apontá-lo como um dos mais surrealistas dentre todos os poetas brasileiros em qualquer época.


CORTE TRANSVERSAL DO POEMA

A música do espaço para, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
O sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem.
A outra metade da noite foge do mundo, empinando os seios.
Só tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou.


O AMANTE INVISÍVEL

Quero suprimir o tempo e o espaço
A fim de me encontrar sem limites unido ao teu ser,
Quero que Deus aniquile minha forma atual e me faça voltar a ti,
Quero circular no teu corpo com a velocidade da hóstia,
Quero penetrar nas tuas entranhas
A fim de ter um conhecimento de ti que nem tu mesma possuis,
Quero navegar nas tuas artérias e confabular com teu sangue,
Quero levantar tua pálpebra e espiar tua pupila quando acordares,
Quero baixar a nuvem para que teu sono seja calmo,
Quero ser expelido pela tua saliva,
Quero me estorcer nos teus braços
Quando os fundamentos da terra se abalarem nos teus pesadelos,
Quero escrever a biografia de todos os átomos do teu corpo,
Quero combinar os sons
Para que a música da maior ternura embale teus ouvidos,
Quero mandar teu nome nas flechas do vento
Para que outros povos te conheçam do outro lado do mar,
Quero forçar teu pensamento a pensar em mim,
Quero desenhar diante de teus olhos
O Alfa e o Ômega nos teus instantes de dúvida,
Quero subir em ramagem pelas tuas pernas,
Quero me enrolar em serpente no teu pescoço,
Quero ser acariciado em pedra pelas tuas mãos,
Quero me dissolver em perfume nas tuas narinas,
Quero me transformar em ti.


PRÉ-HISTÓRIA

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém:
Cai no álbum de retratos.


ARCIMBOLDO E A ETERNIDADE DO EFÊMERO

Esgotando o estoque das surpresas em Milão e em Viena, transfere-se com o seu assistente-demônio para Praga, cidade dos príncipes maníacos, circundados de pintores, escultores, alquimistas, quiromantes, necromantes, autômatos.

Sob o céu ambíguo pinta figuras humanas, alusivamente sinais eruditos, cúmplices o vegetal, o mineral, o animal. Inaugura colagens com cicatrizes de matérias antípodas. Exato: para que conheçamos a flor, a pedra, o cão melhor que nós mesmos.

Irônico-alegórico, realista, maneirista, pré-surrealista, Arcimboldo símbolo torna-se a eminência parda do imprevisto. Com sementes de relógios e estrelas de laranjas construiria o cenotáfio assimétrico de Tycho Brahe. Contesta a aparência do mundo. O seu autorretrato vegetal-mineral se define imperador dos opostos. Surpreende a eternidade do efêmero. Destrói o homem feito à imagem e semelhança de Deus: da base originária, porém, de lama.


JOAN MIRÓ

Miró declara que não pode separar a poesia da pintura. Rompe a linha convencional do discurso realista, criando a sigla, o número plástico, a alusão.

Exorciza o lado mecânico do nosso tempo. Organizando a infância futura, consegue, em todos os casos, conciliar sonho e disciplina racional.

Sacrifica a quantidade da informação à qualidade lírica, a espessura à sutileza.

Nem surrealista nem abstrato ortodoxo, escapa às etiquetas.

Sabe que o mundo através de seus sistemas gastos impede por exemplo o pássaro de telegrafar à pedra; impede as estrelas de jogarem aos dados; a formiga de pedir a palavra; um cachorro de puxar aquela moça por um cordel.

Encontrei Miró em Paris, Barcelona, Palma de Maiorca, Roma. Vi-o, artesão refinado, atento à transposição da forma, ao limite do objeto. Traduz a cenografia do mar, decifra o enigma da bola, do peixe, do triângulo. Põe o cosmo no bolso. Calígrafo, criador de signos, invencível inventor.

Miró extrai o maravilhoso da coisa imediata, visível; transforma em realidade a faixa onírica.

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